abstract
| - I O imenso aposento a luz alaga Com soberbo clarão, E as mesas do banquete se devolvem Pelo vasto salão; E os instrumentos palpitantes soam Frenética harmonia; E o coro dos convivas se levanta Pleno d'ébria alegria! Ali se ostenta o nobre vicioso Rebuçado em orgulho, - o rico infame, Cheio de mesquinhez, - o envilecido, Imundo pobre no seu manto involto De misérias, torpeza e vilanias; - A prostituta que alardeia os vícios, Menosprezando a castidade e a honra, Sem pejo, sem pudor, d'infâmia eivada. E o livre ditirambo, a atroz blasfêmia, Os cantos imorais, canções impudicas, Gritos e orgia envolta em negro manto De fumo e vinho, - os ares aturdiam; E muito além, no meio d'alta noite, Nos ecos, ruas, praças rebatiam. II Depois, ainda suja a boca, as faces, D'imundo vomitar, Com vacilante pé calcando a terra Os viras levantar. A larga porta despedia em turmas A noturna coorte; Ouvia-se depois por toda a parte Gritos, horror de morte! E ninguém vinha ao retinir de ferro, Que assassinava; Porque era dum valente o punhal nobre, Que as leis ditava. Outra vez a cair se emaranhavam Da porta pelo umbral: Tinham tintas de sangue a face, as vestes, Em sangue tinto o punhal. E vinha o sol manifestar horrores Da noite derradeira; E a morte vária revelava a fúria Da turba carniceira. E o sacrílego padre só vendia O tum'lo por dinheiro; Vendia a terra aos mortos insepultos, O vil interesseiro! Ou lá ficavam, como pasto aos corvos, Por sobre a terra nua; E ninguém de tal sorte se pesava, Que ser podia a sua! "E Deus maldisse a terra criminosa, "Maldisse aos homens dela, "Maldisse a cobardia dos escravos "Dessa terra tão bela." III E a mortífera peste lutuosa Do inferno rebentou, E nas asas dos ventos pavorosa Sobre todos passou. E o mancebo que via esperançoso Longa vida futura, Doido sentiu quebrar-lhe as esperanças Pedra de sepultura. E a donzela tão linda que vivia Confiada no amor, Entre os braços da mãe provou bem cedo Da morte o dissabor. E o trêmulo ancião qu'inda esperava Morrer assim Como um fruto maduro destacado D'árvore enfim, Sentiu a morte esvoaçar-lhe em tomo, Como um bulcão, Que afronta o nauta quando avista a terra Da salvação. Era deserta a vila, a casa, o templo - Ar de morte soprou! Mas a casa dos vis nos seus delírios Ébria continuou! "E Deus maldisse a terra criminosa, "Maldisse os homens dela, "Maldisse a cobardia dos escravos "Dessa terra tão bela." IV Eis o aço da guerra lampeja, Do fogoso corcel o nitrido, Eis o brônzeo canhão que rouqueja, Eis da morte represso o gemido. Já se aprestam guerreiros luzentes, Já se enfreiam corcéis belicosos, Já mancebos se partem contentes, Augurando a vitória briosos. Brilha a raiva nos olhos; - nas faces O interno rancor podes ler; Eia, avante! - clamaram os bravos, Eia, avante! - ou vencer ou morrer! Eia, avante! - briosos corramos Na peleja o imigo bater; Crua morte na espada levamos! Eia, avante! - ou vencer ou morrer! Eis o aço da guerra lampeja, Do corcel belicoso o nitrido, Eis o brônzeo canhão que rouqueja E da morte represso o gemido. V E a selva vomitou homens sem conto A voz do onipotente, Como a neve hibernal que o sol derrete, Engrossando a corrente. E em redor dessa vila se estreitaram, Cingidos d'armadura; E a vila se doeu no íntimo seio De tão acre amargura. Mas os fortes bradaram: - Eia, avante! Prontos a batalhar; Mas o braço e valor ante os imigos Se vieram quebrar. E um ano inteiro sem cessar lutaram, Cheios de bizarria, Como dois crocodilos que brigassem Dum rio a primazia! E renderam-se enfim, mas de famintos. De sequiosos; Valentes lidadores foram eles, Se não briosos. VI E o exército contrário entra rugindo Na vila, que as suas portas lhe franqueia: Rasteiro corre o incêndio e surdamente O custoso edifício ataca e mina. Eis que a chama roaz amostra as fendas Das portas que se abrasam; descortina O torvo olhar do vencedor - apenas - Lá dentro o incêndio só, fora só trevas! Urros de frenesi, de dor, de raiva Escutam dos que, às súbitas colhidos, Contra os muros em brasa se arremessam; Dos que, perdido o tino, intentam loucos Achar a salvação, e a morte encontram. Lá dentro confusão, silêncio foral São carrascos aqui, vítimas dentro, Geme o travejamento, estrala a pedra, Cresce horror sobre horror, desaba o teto, E o fumo enegrecido se enovela Co'o vértice sublime os céus roçando. Como o vulcão que a lava arroja às nuvens, Como ígnea coluna que da terra Hiante rebentasse, - tal se eleva, Tal sobe aos ares, tal se empina e cresce A labareda portentosa; e baixa, E desce à terra, c o edifício enrola, E o sorve inteiro, qual se foram vagas Que a dura rocha do alicerce abalam, Que a enlaçam, como a preá, - e ao fundo pego Levam, deixando e mar branco d'espuma. No horror da noite, sibilando os ventos, Línguas piramidais do atroz incêndio. Fumosas pelas ruas estalando, Tingem da cor do inferno a cor da noite, Tingem da cor do sangue a cor do inferno! - O ar são gritos, fumo o céu, e a terra fogo. VII E aqueles que inda sãos e imunes eram, Os que a peste enjeitou, Que fome e sede e privações sofreram... A espada decepou. E a donzela tremeu, da mãe nos braços Não salva ainda, Que incitava os prazeres do soldado A face linda. E o fido amante, que de a ver tão bela Sentiu prazer, Sente martírios porque a vê formosa No seu morrer. Coisa alguma escapou! - Já tudo é cinzas Tudo destruição: A coluna, o palácio, a casa, o templo, O templo da oração! Meninos, homens e mulheres, - todos Já rojam sobre o pó; Mas o Deus, o Deus bom já está vingado. Por ela já sente dó. E a vila d'outrora mais ruidosa, Lá ressurgiu cidade; Porque o Deus da justiça, o das armadas, O Deus é de bondade.
|