About: dbkwik:resource/1FRtV_JEMrKcKyTWsWGhqQ==   Sponge Permalink

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  • Fugindo ao cativeiro
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  • Em cima, ao longe, alta e serena, A ampla curva do céu das noites de geada: Como a palpitação vagamente azulada De uma poeira de estrelas... Negra, imensa, disforme, Enegrecendo a noite, a desdobrar-se pelas Amplidões do horizonte, a cordilheira dorme. Do fundo dos grotões outra vez se subleva, Surge, recai, ressurge... E, assim, como em torrente Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva Despedaçadamente e indefinidamente... Muge na sombra a voz rouca das cachoeiras. Uns tardos caminhantes Sinistros, meio nus, esboçados na sombra, Passam, como visões vagas de um pesadelo. . . II III IV Estacam.
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  • Fugindo ao cativeiro
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Autor
  • Vicente de Carvalho
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  • Em cima, ao longe, alta e serena, A ampla curva do céu das noites de geada: Como a palpitação vagamente azulada De uma poeira de estrelas... Negra, imensa, disforme, Enegrecendo a noite, a desdobrar-se pelas Amplidões do horizonte, a cordilheira dorme. Como um sonho febril no seu sono ofegante, Na sombra em confusão do mato farfalhante, Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo; Trepa agora alcantis por escarpas a prumo, Eriça-se em calhaus, bruscos como arrepios; Mais repousado, além levemente se enruga Na crespa ondulação de cômoros macios: Resvala num declive; e logo, como em fuga Precípite, através da escuridão noturna, Despenha-se de chôfre ao vácuo de uma furna. Do fundo dos grotões outra vez se subleva, Surge, recai, ressurge... E, assim, como em torrente Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva Despedaçadamente e indefinidamente... Muge na sombra a voz rouca das cachoeiras. Rajadas sorrateiras De um vento preguiçoso arfam de quando em quando Como um vasto motim que passa sussurrando: E em cada árvore altiva, e em cada humilde arbusto, Há contorções de raiva ou frêmitos de susto. A mata é tropical: basta, quase maciça De tão cerrada. Ao pé do tronco dominante, Que, imperturbavelmente imóvel, inteiriça Sob a rija galhada o torso de gigante. - Uma vegetação turbulenta e bravia Rasteja, alastra, fura, enrosca-se, porfia: Moitas de craguatás agressivos; rasteiras Trapoeirabas tramando o chão todo; touceiras De brejaúva,em riste as flechas oriçadas De espinhos; e por tudo, e em tudo emaranhadas, As trepadeiras, em redouças balouçando Hastes vergadas, galho a galho acorrentando Árvores, afogando arbustos, brutalmente Enlaçando à jissara o talhe adolescente. . . Cem espécies formando a trama de uma sebe, Atulhando o desvão de dois troncos; a plebe Da floresta, oprimida e em perpétuo levante. Acesa num furor de seiva transbordante, Toda essa multidão desgrenhada - fundida Como a conflagração de cem tribos selvagens Em batalha - a agitar cem formas de folhagens Disputa-se o ar, o chão, o orvalho, o espaço, a vida. Na confusão da noite, a confusão do mato Gera alucinações de um pavor insensato, Aguça o ouvido ansioso e a visão quase extinta: Lembra - e talvez abafe - urros de onça faminta A mal ouvida voz da trêmula cascata Que salta e foge e vai rolando águas de prata. Rugem sinistramente as moitas sussurrantes. Acoitam-se traições de abismo numa alfombra. Penedos traçam no ar figuras de gigantes. Cada ruído ameaça, e cada vulto assombra. Uns tardos caminhantes Sinistros, meio nus, esboçados na sombra, Passam, como visões vagas de um pesadelo. . . São cativos fugindo ao cativeiro. O bando É numeroso. Vêm de longe, no atropelo Da fuga perseguida e cansada. Hesitando, Em recuos de susto e avançadas afoitas, Rompendo o mato e a noite, investindo as ladeiras, Improvisam o rumo ao acaso das moitas. Vão arrastando os pés chaga dos de frieiras... De furna em furna a Serra, imensa, se desdobra, De sombra em sombra a noite, infinda, se prolonga; E flexuosa, em vaivéns, como de dobra em dobra, A longa fila ondula e serpenteia, e a longa Marcha através da noite e das furnas avança. . . Vão andrajosos, vão famintos, vão morrendo. Incita-os o terror, alenta-os a esperança: Fica-lhes para trás, para longe, o tremendo Cativeiro... E através desses grotões por onde Se arrastam, do sertão que os esmaga e os esconde. Da vasta escuridão que os cega e que os ampara, Do mato que obsta e apaga os seus passos furtivos, Seguem, almas de hebreus, rumo do Jabaquara - A Canaã dos cativos. Vão calados, poupando o fôlego. De quando Em quando - fio d'água humilde murmurando As tristezas de um lago imenso - algum gemido, Um grito de mulher, um choro de criança, Conta uma nova dor em peito já dorido, Um bruxoleio mais mortiço da esperança, A rajada mais fria arrepiando a floresta E a pele nua; o espinho entrando a carne; a aresta De um seixo apunhalando o pé já todo em sangue: Uma exacerbação nova da fome velha, A tortura da marcha imposta ao corpo exangue; O joelho exausto que, contra a vontade, ajoelha... E a longa fila segue: a passo, vagarosa, Galga de fraga em fraga a montanha fragosa, Bem mais fragosa, bem mais alta que o Calvário... Um, tropeçando, arrima o pai octogenário: Os mais valentes dão apoio aos mais franzinos; E Mães, a agonizar de fome e de cansaço, Levam com o coração mais do que com o braço Os filhos pequeninos. II Ei-lo, por fim, o termo desejado Da subida: a montanha avulta e cresce De um vale escuro ao céu todo estrelado; E o seu cume de súbito aparece De um resplendor de estrelas aureolado. Mas ai! Tão longe ainda! . .. E de permeio A vastidão da sombra sem caminhos, Um fundo vale, tenebroso e feio, E o mato, o mato das barrocas, cheio De fantasmas, de estrépitos, de espinhos. Tão longe ainda!...E os peitos arquejantes, E as fôrças e a coragem sucumbindo... Estacando, aterrados, por instantes Pensam que a morte hão de encontrar bem antes Do termo desse itinerário infindo... Tiritando, a chorar, uma criança Diz com voz débil: "Mãe, faz tanto frio! . . ." E a mãe os olhos desvairados lança Em torno, e vê apenas o sombrio Manto de folhas que o tufão balança... "Mãe, tenho fome!" a criancinha geme, E ela, dos trapos arrancando o seio, Põe-lho na boca ansiosa, aperta e espreme... Árido e seco!...E do caminho em meio Ela, aterrada e muda, estaca e treme. Vai-lhe morrer, morrer nos próprios braços, Morrer de fome, o filho bem-querido; E ela, arrastando para longe os passos, O amado corpo deixará, perdido Para os seus beijos, para os seus abraços... Esse cadáver pequenino, e o riso Murcho no lábio, e os olhos apagados, Toda essa vida morta de improviso, Hão de ficar no chão, abandonados À inclemência dos sóis e do granizo; Esse entezinho débil e medroso, Que ao mais leve rumor se assusta e busca O asilo do seu seio carinhoso, Há de ficar sozinho; e, em tôrno, a brusca Voz do vento ululante e cavernoso. . . E, em tôrno, a vasta noite solitária Cheia de sombra, cheia de pavores, Onde passa a visão errante e vária Dos lobisomens ameaçadores Em desfilada solta e tumultuária... Desde a cabeça aos pés, tôda estremece; Falta-lhe a fôrça, a vista se lhe turva, Tôda a coragem na alma lhe esmorece, E, afastando-se, ao longe, numa curva O bando esgueira-se, e desaparece... Ficam sós, ela e o filho, agonizando, Ele a morrer de fome, ela de medo. Ulula o furacão de quando em quando, E sacudindo os ramos e o folhedo Movem-se as árvores gesticulando. Ela ergue os olhos para o céu distante E pede ao céu que descortine a aurora: Dorme embuçado em sombras o levante, Mal bruxuleia pela noite fora Das estrelas o brilho palpitante... Tenta erguer-se, e recaí; soluça e brada, E apenas o eco lhe responde ao grito; Os olhos fecha para não ver nada, E tudo vê com o coração aflito, E tudo vê com a alma alucinada. Dentro se lhe revolta a carne; explode O instinto bruto, e quebra-lhe a vontade: Mães, vosso grande amor, que tanto pode, Pode menos que a indômita ansiedade Em que o terror os músculos sacode! Ela, apertando o filho estreitamente, Beija-lhe os olhos úmidos, a boca... E desvairada, em pranto, ébria e tremente, Arrancando-o do seio, de repente Larga-o no chão e foge como louca. III Aponta a madrugada: Da turva noite esgarça o úmido véu, E espraia-se risonha, alvoroçada, Rosando os morros e dourando o céu. A caravana trôpega e ansiosa Chega ao tope da Serra... O olhar dos fugitivos Descansa enfim na terra milagrosa Na abençoada terra Onde não há cativos. Em baixo da montanha, logo adiante, Quase a seus pés, uma planície imensa, Clara, risonha, aberta, verdejante: E ao fundo do horizonte, ao fim da extensa Macia várzea que se lhes depara Ali, próxima, em frente, Esfumadas na luz do sol nascente, As colinas azuis do Jabaquara... O dia de ser livre, tão sonhado Lá do fundo do escuro cativeiro, Amanhece por fim, leve e dourado, Enchendo o céu inteiro. Uma explosão de júbilo rebenta Desses peitos que arquejam, dessas bocas Famintas, dessa turba macilenta: Um borborinho de palavras loucas, De frases soltas que ninguém escuta Na vasta solidão se ergue e se espalha, E em pleno seio da floresta bruta Canta vitória a meio da batalha. Seguindo a turba gárrula e travessa Que se alvoroça e canta e salta e ri-se, Um coitado, com a trêmula cabeça Toda a alvejar das neves da velhice, Tardo, trôpego, só, desamparado, Chega afinal, exsurge à superfície Do alto cimo; repousa, consolado, Longamente, nos longes da planície O olhar quase apagado; Distingue-a mal, duvida; resmungando, Fita-a; compreende-a pouco a pouco; vê-a Anunciando próxima, esboçando - No chão que brilha de um fulgor de areia, Num verde-claro de ervaçal que ondeia- A aparição da Terra Prometida... Todo trêmulo, ajoelha; e ajoelhado, De mãos postas, nos olhos a alma e a vida, Ele, o mesquinho e o bem-aventurado, Adora o Céu nessa visão terrena... E de mãos postas sempre, extasiado, Murmura, reza esta oração serena Como um tôsco resumo do Evangelho: "Foi Deus Nosso Senhor que teve pena De um pobre negro velho..." Seguem. Começa a íngreme descida. Descem. E recomeça A peregrinação entontecida No labirinto da floresta espêssa. Sob o orvalho das fôlhas gotejantes, Entre as moitas cerradas de espinheiros, Andrajosos, famintos, triunfantes, Descem barrancos e despenhadeiros. Descem rindo, a cantar... Seguem, felizes, Sem reparar que os pés lhes vão sangrando Pelos espinhos e pelas raízes; Sem reparar que atrás, pelo caminho Por onde fogem como alegre bando De passarinhos da gaiola escapo - Fica um pouco de trapo em cada espinho E uma gôta de sangue em cada trapo. Descem rindo e cantando, em vozeria E em confusão. Tôda a floresta, cheia Do murmúrio das fontes, da alegria Deles, da voz dos pássaros, gorjeia. Tudo é festa. Severos e calados, Os velhos troncos, plácidos ermitas, Os próprios troncos velhos, remoçados, Riem no riso em flor das parasitas. Varando acaso às árvores a sombra Da folhagem que à brisa arfa e revoa, Na verde ondulação da úmida alfombra O ouro leve do sol bubuia à toa; A água das cachoeiras, clara e pura, Salta de pedra em pedra, aos solavancos; E a flor de S. João se dependura Festivamente à beira dos barrancos... Vão alegres, ruidosos... Mas no meio Dessa alegria palpitante e louca, Que transborda do seio E transbordada canta e ri na bôca, Uma mulher, absorta, acabrunhada, Segue parando a cada passo, e a cada Instante os olhos para trás volvendo: De além, do fundo dessas selvas brutas Chama-a, seu nome em lágrimas gemendo, Uma vozinha ansiosa e suplicante... Mãe, onde geme que tão bem o escutas Teu filho agonizante? IV De repente, como um agouro e uma ameaça, Um alarido de vozes estranhas passa Na rajada do vento... Estacam. Como um bando De ariscos caitetus farejando a matilha, Imóveis, alongado o pescoço, arquejando, Presa a respiração, o olhar em fogo, em rilha Os dentes, dilatada a narina, cheirando A aragem, escutando o silêncio, espreitando A solidão; assim, num alarma instintivo, Estaca e põe-se alerta o bando fugitivo. Nova rajada vem, nôvo alarido passa... Como, topando o rastro inda fresco da caça, Uiva a matilha enquanto inquire o chão agreste, E de repente, em fúria, alvoçada investe E vai correndo e vai latindo de mistura; Rosna ao dar-lhes na pista a escolta que os procura, E morro abaixo vem ladrando-lhes no encalço. Grita e avança em triunfo a soldadesca ufana. E os frangalhos ao vento, em sangue o pé descalço, Alcatéia usurpando a forma e a face humana, Almas em desespero arfando em corpos gastos, Mães aflitas levando os filhinhos de rastos, Homens com o duro rosto em lágrimas, velhinhos Esfarrapando as mãos a tatear nos espinhos; Tôda essa aluvião de caça perseguida Por um clamor de fúria e um tropel de batida, Foge... Rompendo o mato e rolando a montanha, Foge... E, moitas, a dentro e barrocais a fora, Arrasta-se, tropeça, esbarra, se emaranha, Arqueja, hesita, afrouxa, e desanima, e chora... Param. Perto, bramindo, a escolta o passo estuga. Os fugitivos, nesse aproximar da escolta Sentem que vai chegando o epílogo da fuga: A gargalheira, a algema, as angústias da volta... Além, fulge na luz da manhã leve e clara, O contôrno ondulante e azul do Jabaquara. Adeus, terra bendita! Adeus, sonho apagado De ser livre! É preciso acordar, e acordado Ver-te ainda, e dizer-te um adeus derradeiro, E voltar, para longe e para o cativeiro. Sôbre eles, novamente, uma funéria noite Cai, para sempre... Como a trôpega boiada, Que, abrasada de sede e tangida do açoite, Se arrasta pela areia adusta de uma estrada: Volverão a arrastar-se, humildes e tristonhos, Tangidos do azorrague e abrasados de sonhos, Pelo deserto areal desse caminho estreito: A vida partilhada entre a senzala e o eito... Agrupam-se, vencidos, A tremer, escutando o tropel e os rugidos Da escolta cada vez mais em fúria e mais perto. Nesse magote vil de negros maltrapilhos Mais de um olhar, fitando o vasto céu deserto, Ingenuamente exprobra o Pai que enjeita os filhos... Destaca-se do grupo um fugitivo. Lança Em tôrno um longo olhar tranqüilo, de esperança, E diz aos companheiros: "Fugi, correi, saltai pelos despenhadeiros; A várzea está lá em baixo, o Jabaquara é perto... Deixai-me aqui sozinho. Eu vou morrer, decerto... Vou morrer combatendo e trancando o caminho. A morte assim me agrada: Eu tinha de voltar p´ra conservar-me vivo... E é melhor acabar na ponta de uma espada Do que viver cativo". E enquanto a caravana Desanda pelo morro atropeladamente, Ele, torvo, figura humilde e soberana, Fica, e a pé firme espera o inimigo iminente. Hércules negro! Corre, abrasa-lhe nas veias Sangue de algum heróico africano selvagem, Acostumado à guerra, a devastar aldeias, A cantar e a sorrir no meio da carnagem A desprezar a morte espalhando-a às mãos cheias... Não pode a escravidão domar-lhe a índole forte, E vergar-lhe a altivez, e ajoelhá-lo diante Do carrasco e da algema: Sorri para o suplício e a fito encara a morte Sem que lhe o braço trema, Sem que lhe ensombre o olhar o medo suplicante. Erguendo o braço, ele ergue a foice: a foice volta, E rola sobre a terra uma cabeça solta. Sobre ele vem cruzar-se o gume das espadas... "Ah, prendê-lo, jamais!" respondem as foiçadas Turbilhonando no ar, e ferindo, e matando. De lado a lado o sangue espirra a jorros... Ele, Ágil, possante, ousado, heróico, formidando, Faz frente: um contra dez, defende-se e repele. E não se entrega, e não recua, e não fraqueja. Tudo nele, alma e corpo ajustados, peleja: O braço luta, o olhar ameaça e desafia, A coragem resiste, a agilidade vence. E, coriscando no ar, a foice rodopia. Afinal um soldado, ébrio de covardia, Recua; vai fugir... Recua mais; detém-se: Fora da luta, sente o gosto da chacina; E vagarosamente alçando a carabina, Visa, desfecha. O negro abrira um passo à frente, Erguera a foice, armava um golpe... De repente Estremece-lhe todo o corpo fulminado. Cai-lhe das mãos a foice, inerte, para um lado, Pende-lhe, inerte, o braço. Impotente, indefeso Ilumina-lhe ainda a face decomposta Um derradeiro olhar de afronta e de desprezo. Como enxame em furor de vespas assanhadas, Assanham-se-lhe em cima os golpes sem resposta, E retalham-no à solta os gumes das espadas... E retalhado, exausto, o lutador vencido Todo flameja em sangue e expira num rugido.
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