About: dbkwik:resource/3M-woUat3yy0EaliObrw0g==   Sponge Permalink

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  • Caramuru/III
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  • Já nos confins extremos do horizonte Dourava o sol no ocaso rubicundo Com tíbio raio acima do alto monte, E as sombras caem sobre o vale fundo; Ia morrendo a cor no prado e fonte; E a noite, que voava ao novo mundo, Nas asas traz com viração suave O descanso aos mortais no sono grave. II Só com Gupeva a dama e com Diogo, Gostosa aos dois de intérprete servia; E, perguntado sobre o sacro fogo, A qual fim se inventara, a que servia, Deu-lhe simples razão Gupeva logo: "- Supre de noite (disse) a luz do dia; E como Tupá ao mundo a luz acende, Tanto fazer-se aos hóspedes emprende. III IV V VI VII VIII IX X L
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  • Canto III
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Autor
  • José de Santa Rita Durão
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  • Já nos confins extremos do horizonte Dourava o sol no ocaso rubicundo Com tíbio raio acima do alto monte, E as sombras caem sobre o vale fundo; Ia morrendo a cor no prado e fonte; E a noite, que voava ao novo mundo, Nas asas traz com viração suave O descanso aos mortais no sono grave. II Só com Gupeva a dama e com Diogo, Gostosa aos dois de intérprete servia; E, perguntado sobre o sacro fogo, A qual fim se inventara, a que servia, Deu-lhe simples razão Gupeva logo: "- Supre de noite (disse) a luz do dia; E como Tupá ao mundo a luz acende, Tanto fazer-se aos hóspedes emprende. III Se pecando o mau espirito solevas, Sucede que talvez cruel se enoje; E como é pai da noite e autor das trevas, Tanto aborrece a luz, que, em vendo-a, foge. Porém, se a luz eterna o peito elevas, Não há Fúria do Averno que se arroje; Talvez por lhe excitar tristes idéias, Das chamas que tiveram por cadeias". IV Admira o pio herói que assim conheça A nação rude as legiões do Averno; Nem já duvida que do céu lhe desça Clara luz de um principio sempiterno. "- Diz-me, hóspede amigo, se professa Este teu povo, diz, com culto externo Adorar algum Deus? qual é? onde ande? Se seja um Deus somente, ou que outros mande?" V "- Um Deus (diz), um Tupá, um ser possante Quem poderá negar que reja o mundo, Ou vendo a nuvem fulminar tonante, Ou vendo enfurecer-se o mar profundo? Quem enche o céu de tanta luz brilhante? Quem borda a terra de um matiz fecundo? E aquela sala azul, vasta, infinita, Se não está lá Tupá, quem é que a habita? VI A chuva, a neve, o vento, a tempestade Quem a rege? a quem segue? ou quem a move? Quem nos derrama a bela claridade? Quem tantas trevas sobre o mundo chove? E este espírito amante da verdade, Inimigo do mal, que o bem promove, Coisa tão grande, como fora obrada, Se não lhe dera o ser, quem vence o nada? VII Quem seja este grande ente, e qual seu nome, (Feliz quem saber pode) eu cego o ignoro; E, sem que a empresa de sabê-lo tome, Sei que é quem tudo faz e humilde o adoro. Nem duvido que os céus e terra dome, Quando nas nuvens com terror o exploro, Deixando o mortal peito em vil desmaio, Ameaçar no trovão, punir no raio. VIII Só pasmo se nos fez como não veio, Devendo amar o que obra de mão sua, Ao mundo de anhangás cercado e cheio A livrar o homem dessa besta crua! Como é possível que não desse um meio, Com que a mente ignorante, enferma e nua Tratar com ele possa, quando é claro Que o pai não deixa o filho em desamparo? IX Sinto bem remorder dentro em meu peito Lembrança, que me acusa: por mim fica, Se mais bem do que faz, me não tem feito, Que é néscio quem o ingrato benéfica. Outro povo talvez mereça eleito A assistência dos céus de graças rica; Nem contra Deus se justifica a queixa, Que costume deixar quem o não deixa. X Mas, se do trono celestial e eterno, Apesar da malícia, nos visita, Quem sabe se por zelo hoje paterno, A nosso bem mandar-te aqui medita? Pois creio bem que contra o fogo Averno Trazes a chama que a do raio imita, Ou que vens como luz, de etéreo assento, Por levar-nos contigo ao firmamento". XI Pasmava o lusitano da eloqüência Com tão alto pensar numa alma rude, Notando como a eterna sapiência A face a todos mostra da virtude. E reputava por maior clemência, Que a quem, se a fé conhece, ingrato a ilude, Negasse Deus a luz, que os outros viam, Porque, tendo-a maior, mais cegariam". XII "Não deixa nunca os seus o céu piedoso (Diogo respondeu) que à terra indigna Manda o seu Unigênito glorioso Que ofereça, a quem o invoca, a mão benigna; Mas, se antevisse no homem pernicioso Uma livre eleição sempre maligna, Por dar-lhe menos pena em menor falta Em sombra, como a voz, deixa tão alta. XIII Tendes entanto um claro sentimento, Que espírito imortal se nos concede..." "Sim, diz Gupeva, que o decide atento Quem tudo quanto sente parte ou mede. Mas mirando ao seu próprio pensamento, Vê que a medida sempre intato excede; E sendo Indivisível desta sorte, Como pode a razão sofrer a morte? XIV Quantas vezes em mim, se ser pudesse, Um pensamento d'alma eu dividira! Que todo o mal enfim que o homem padece Vem da imagem cruel, que dentro gera. mas a interna impressão tanto mais cresce Quanto o peito ansiado mais suspira; E vejo que há em mim mesmo oculto e interno Entre a mente e a verdade um laço eterno. XV Sendo a mente mortal, tornara ao nada, Ao apagar-se a luz no extremo dia. E antes de ser punida ou premiada, Uma alma justa ou ré pereceria. sempre em desejos, nunca saciada. Má sem castigo e sem fortuna pia, Sem chegar ao seu fim perder a essência... Como é crível que Deus tem providência? XVI Se o fim do inerte bruto se inquirisse, No contexto das obras respondera Que fora leito porque nos servisse E que eterno destino não tivera, Onde era bem que a morte destruísse Quem para imortal fim nunca nascera; Porque lhe dera, a tê-lo, o céu divino Outro corpo, outra forma, outro destino. XVII Que o bruto elege, pensa, que discorre Do que o vemos obrar fica evidente; mas cada espécie a um curto fim concorre, Sem órgão e aptidão com que outro intente. O homem tudo quer, por tudo corre, Tem órgãos para tudo e tudo sente; Infinito em pensar e no que vejo Maior que no pensar no seu desejo. XVIII Tudo domina só, tudo governa, Sem que a outro animal servir costume; Toda outra espécie à sua, é subalterna, E, se imortal nascera, fora um nome; Arbítrio universal, razão eterna, Capaz de receber o imenso lume, E fora mais, se a morte o dissipara, Que se céu, terra e inferno aniquilara." XIX Pasmado Diogo do que atento escuta, Não crê que a singular filosofia possa ser da invenção da gente bruta, Mas a intérprete bela lhe advertia que a antiga tradição o nunca interrupta, Em cantigas, que o povo repetia, Desde a idade infantil todos compreendem E que dos pais e mães cantando o aprendem. XX Que eram pedaços das canções, que entoam As que ouvia a Gupeva (e talvez tudo) Que poético estilo doces soam Feitas por sábios de sublime estudo. Que alguns entre eles com tal estro voam, Que envolvendo-se o harmônico no agudo, Parece que lhe inflama a fantasia Algum nume, se o há, da poesia. XXI Tendo Paraguassu dito discreta, Prossegue então Gupeva os seus assuntos Que, se as almas morressem, que indiscreta A memória seria dos defuntos ? A que servira a lei que nos decreta Que no sepulcro se lhe ponham juntos Comidas, arcos, frechas? quem resista A quem depois da morte não subsiste? XXII O inimigo anhanhá, logo que deixa A nossa alma esta carne, em fúria a invade, E do mal, que cá fez, cruel se queixa, Até que em sombras entre ou claridade; O rito do sepulcro expresso deixa, Que, enterrando-se em pé, na eternidade O fim buscamos, a que Deus nos cria E que antes de o alcançar se segue a via. XXIII Deste princípio nasce que com prantos Noite e dia se chora o seu decesso. Louvam-se nos congressos como santos, E põe-se no sepulcro um marco expresso; Tantas memórias, pois, ofícios tantos, A que fim, se a alma acaba, eu não conheço. A expiação e obséquio era frustrado, Se ela não vive ou purga algum pecado. XXIV Costumes são da oculta antiguidade Que o grão-Tamandaré desde alta origem As gentes ensinou, com que à piedade Todas no mundo as almas se dirigem; E quando algum conteste esta verdade, Provam-na os anhangás que nos afligem, Pedindo aos nigromantes que a alma vendam No que uma alma imortal nos recomendam. XXV Que é desde nossos pais fama constante Que aonde o sol se pule fama montanhas Há um fundo lugar de que é habitante O pérfido anhangá com cruéis sanhas: Ali de enxofre a escuridão fumante Com portas encerrou Tupá tamanhas, Que as não pode forçar nem todo o inferno: A morte é a chave, e o cadeado é eterno. XXVI Dentro nada se vê na sombra escura; Mas no vislumbre fúnebre e tremendo Distingue-se com vista mal segura Um antro vasto, tenebroso e horrendo; Ordem nenhuma tem; tudo conjura Ao sempiterno horror, que ali compreendo: Mutuamente mordendo-se de envolta, Um noutro agarra, se o primeiro o solta. XXVII Se viste onda sobre onda procelosa, Quando bate escumando a areia funda, Como esta aquela engola, e mais furiosa Montanha d'água vem, que ambas afunda, Tal na caverna lôbrega horrorosa Onda e onda de fogo os maus imunda: Este sobe; Este desce; e um cataclismo Alaga as nuvens e descobre o abismo. XXVIII Aqui o fero anhangá caiu (se conta), Quando do grão-Tupá rompia o jugo; E vem dos astros, que soberbo monta, A ser em pena vil do homem verdugo. Ali com mão cruel, com fúria pronta Pune da nossa espécie o vil refugo; E, em vez de mãos, as miserandas gentes Enrosca em laços de cruéis serpentes. XXIX Ali, do grão-Tupá por lei severa, No incêndio está, que o tempo não apaga, Quem torpe incesto faz, quem adultera, Quem 6 réu da lascívia infame e vaga. Cada um, como a culpa cometera, Tanto e no próprio membro o crime paga: Fere-se a quem feriu; mas o homicida, Só porque morra mais, não perde a vida. XXX Sentada em meio da morada horrenda, Branca de cãs e imóvel na manobra, Imensa sombra faz que a cauda prenda Dentro na boca horrível uma cobra: Com rouca(a voz e intimação tremenda Ao tempo preso na vipérea dobra Diz, retumbando eco a cavidade: Oh vida! oh tempo! oh morte! oh eternidade! XXXI Além da grã-montanha, em que se oculta O cárcere das sombras horroroso, De mil delicias num terreno exulta Quem vive justo ou quem morreu piedoso. Não se acha imagem nesta terra inculta Que seja sombra do país ditoso. O tempo ali da paz foi levantado, Sempre aberto ao prazer e à dor fechado. XXXII Há do ameno jardim na vasta entrada Uma grã-porta de safiras belas, Onde da etérea luz reverberada Se pinta em vasto fundo um mar de estrelas; Toda ela em torno, em torno decorada De flóridas belíssimas capelas. Junto voragem há de um precipício, Que sorve a quem se encosta infecto em vício. XXXIII Vêem-se dentro campinas deleitosas, Geladas fontes, árvores copadas, Outeiros de cristal, campos de rosas, Mil frutíferas plantas delicadas; Coberto o chão das frutas mais mimosas, Com mil formosas cores matizadas; E, à maneira, entre as flores, de serpentes, Vão volteando as líquidas correntes. XXXIV Latadas de martírios há sombrias, Que com a rama e flor formam passeios, Onde passam sem calma os claros dias Gozando sem temor de mil recreios. Chuvas ali não há, nem brumas frias, Nem das procelas hórridas receios; Nem há na primavera e verdes maios Quem receie o trovão, nem tema os raios. XXXV Entre o sussurro ali das fontezinhas, Harmônica se escuta a voz sonora, Com que mil inocentes avezinhas Entoam a alvorada à fresca aurora; Muitas com vôos vão ao céu vizinhas, Outra segue o consorte, a quem namora, E mil doces requebros gorjeando, De raminho em raminho vai saltando. XXXVI Uma ave entre outras há que se discorre, Ou fama certa seja ou voz fingida, Que do jardim a nós, de nós a corre, Como fiel correio da outra vida; Dizem que voa, quando algum lá morre, E exprime no seu canto enternecida O que alma passa nas eternidades, E que nos leva e traz doces saudades. XXXVII Neste ameno jardim virem contentes As almas que no mundo valorosas A santa lei guardaram diligentes, Obrando ações na vida gloriosas; Os que foram na guerra mais valentes, E a pátria com ações guardam honrosas E os que em bélico horror com peito forte Temem mais uma afronta do que a morte. XXXVIII Aqui do grão-Tupá no amado seio Conversam, dançam, jogam sem fastio; Uns dos males passados sem receio Cantam da crua guerra o caso ímpio, Outros da própria morte o golpe feio Recordam sem pavor, contam com brio, Que o recordar um mal que ó já passado Dá depois mais prazer que então cuidado. XXXIX Ali dos pais as almas venturosas Unidas sempre estão ao filho amado; E o prêmio das fadigas laboriosas Cozam no seio um doutro sem cuidado. A mãe abraça as filhas amorosas, Como o esposo a consorte em puro agrado; Sem guerra, sem contenda, sem porfia Passam tranqüila a noite e alegre o dia. XL Mas o que é mais suave, o que é mais doce, É gozar-se entre tanta amenidade De todo o bom desejo a inteira posse, Nem ter de coisa vá necessidade. Oh quem do tanto bem possessor fosse! Grato país! amável liberdade! Onde por graça de Tupá infinita Ninguém padece, teme ou necessita! XLI Dizendo assim, Gupeva enterneceu-se, Sentindo a força que o mortal levanta A bem-aventurança. Comoveu-se Também Diogo, vendo que em luz tanta Tão pouco de Deus sabe; a todos deu-se O eterno lume, cópia da lei santa; Mas bem que de esplendor inunde um pego, Quem é indigno de Deus fica mais cego. XLII " Que valem (disse ao bárbaro ignorante) Jardins, flores, delicias e prazeres, Faltando o objeto enfim mais importante, Que é a face de Tupá? pois de a não veres, Todo outro bem, que gozes por brilhante, Por belo, por maior que o conceberes, Para a nossa cobiça mal saciada É vil, é vão, é pouco, é fumo, é nada. XLIII Finge que possa o homem gozar junto Destes bens cá da terra um vasto rio, Quanto Deus criar pode, tudo e munto; Quem dele não gozar fica vazio; Se o mundo a uma alma basta eu não pergunto: Que ela goze infinitos sempre eu fio Que. qual hidropisia verdadeira, Quantos mais possuir, tanto mais queira. XLIV Toda essa glória, que me tens pintado, Sem mais que um bem do mundo circunscrito, Não é, Gupeva meu, mais que um bocado Para quem só se farta do infinito; E quando tudo o mais se haja logrado, Se é um bem transitório, se é finito, Em breve hás de sentir, e sem remédio, Do futuro ânsia e do parado tédio. XLV Deus, caro amigo meu é Deus somente Quem pode saciar nossa vontade; Chegar a parte aonde o ver contente, E vê-lo ali por toda a eternidade; Todo o bem nele esta sumo e eminente, Honra, gloria, grandeza, majestade, Esta é, se discorreres em bom siso, A idéia que hás de ter de um Paraíso. XLVI Porém narra-me entanto o que se pensa Entre vós princípios deste mundo: Quando? como? por quem na idéia imensa Se tomou a medida ao céu profundo? Qual foi o homem primeiro e de qual crença? Ou se noticias tens do Adão segundo? De qual origem sois ou de qual gente? Ou quem veio a povoar tal continente?" XLVII " Memória nunca ouvi (Gupeva disse) Onde o homem nascesse; mas comprendo Que houve princípio enfim que o produzisse; Que sem fim e princípio eu nada entendo; Como o criou não sei; e, bem que o visse, Não pudera entendê-lo, conhecendo Que entre o nada e o ser há tal distância, que a ti te creio igual nesta ignorância. XLVIII O primeiro homem na geral lembrança, A tradição dos velhos mais antigos, Antes do grão-dilúvio não alcança; Sabemos 80 que uns homens inimigos, Do forte braço na falaz confiança, Encheram todo o mundo de perigos E deram causa que o dilúvio extenso Num pego sepultasse a terra imenso. XLIX Do renovado mundo o patriarca Desde o alto monte, onde escapou, descendo, Depois que a grã-canoa e imensa barca, Em que ao alto subiu, foi fundo tendo, Na prole imensa dominou monarca, E as várias tribos dividiu havendo Por continentes e ilhas no mar fundo, De toda a gente é pai que habita o mundo. L Predisse o justo velho o grão-castigo, E, os homens exortando à penitência, Nem à vista do próximo perigo Chamá-los pode à justa obediência. Cansado então Tupá da paz amigo Do cruel latrocínio e da violência, Quis por vingar-se o Padre onipotente Com águas apagar a chama ardente. LI Faz que se abram do céu, que água encerra, A catadupas, como imensos rios, E, que a face inundando-se da terra, Se afoguem bons e maus, justos e ímpios. Os elementos em desfeita guerra Confundem-se em medonhos desafios; Cai um mar desde o céu, e na mesma hora Manda a terra do centro outro mar fora. LII Já rota a margem, que nas brancas praias Às ondas posto tinha o grão-sob'rano, Passam as águas das extremas raias Onde se ajunta com o monte o plano; O peixe nadador, nas altas faias, No ninho esta do alígero tucano; E em seios as baleias ver puderas, Covis dos tigres e antros de panteras. LIII Iam entanto os homens miserandos De um monte a outro por fugir das águas, E seu destino algum bandos e bandos Correndo gritam com piedosas; magoas, E os cegos deprecam, que os escutem brandos; Mas a ira de Tupá com justas frágoas Fulminando centelhas e coriscos, Faz maiores os danos do que os riscos. LIV Via-se em longa tábua mal segura Nadar sobre água a mãe desventurada, E, tendo ao colo apensa a criatura, Ora é n’água abatida, ora elevada. Quem desde o alto das casas se pendura, Quem fabrica de lentos a jangada, Qual da fome mortal horror concebe, E crê que é menos mal, se a morte bebe. LV Tamandaré, porém, de Tupá amigo, Enquanto grã-procela horrível soa, Salva o naufrago mundo pelo abrigo Que aos filhos procurou na grã-canoa; E a barca, por memória do castigo, Elevada deixou sobre a coroa Das altas serras, que, na fama claras, Têm nome semelhante ao das araras. LVI Daqui por várias terras espalhados Os homens foram que seus netos cremos; Uns que a fronte de nós deixou queimados, O claro sol que nasce em seus extremos, Outros, que habitam climas apartados, Dessa cor branca que em teu rosto vemos, Divididos do mar, por onde as proas Endireitam a nós vossas canoas. LVII Se sois de nós, se nós das vossas gentes, São coisas que nós todos ignoramos, Pois de paterno chão sempre contentes, Doutras terras e tempos não cuidamos; Mas vós, que os mares passeais ingentes, Podereis inferir se os que aqui estamos, Depois que de um pai só todos nascemos, Com alguns entre vós nos parecemos, LVIII Que, se em vós houve ou há quem assim trate, Quem se governe assim, quem edifique, Ou quem com armas, como nós combate, Quem todo à caça, como nós se aplique; Sé há quem devore os homens quando os mate, A quem o feroz vulto imberbe fique, Desde Tamandaré, que é pai das gentes, Podemos crer que são nossos parentes. LIX Conserva-se num povo o antigo rito, Se o não altera o rito do estrangeiro, E sempre algum vestígio fica escrito Por tradição do século primeiro Vós sabereis, se a história tenha dito, Que houve tempo em que o mundo quase inteiro, Sem sabermos uns dos outros se habitasse, E, como nós erramos, tudo errasse. LX Se os mares nunca dantes navegados Discorrestes por climas diferentes, Sabereis doutros homens separados, Descobertos talvez das vossas gentes, Que por estreitos, pode ser, gelados, Transitaram nos nossos continentes; Vos direis se homem há na roxa aurora Nua e pintados, como nós agora. LXI E por que saibas mais nosso costume, Onde julgues melhor da antiga origem, Dir-te-ei como, seguindo o impresso lume, As prudentes nações cá se dirigem; Nem do vício de muitas se presume Contra aquelas que sabias se corrigem; Que também entre vós, creio, se escuta, Quem tem boas leis, tem má conduta. LXII De Tupá, que o trovão com fogo manda, Trememos, como vês, espavoridos; Mas, quando vemos que a procela abranda, Ficam os homens de Tupá esquecidos: E bem suspeito que nessoutra banda Suceda assim, se o horror vem dos sentidos; E que entre vós também gente se veja Que não temem Tupá e não troveja. LXIII Quem o blasfeme, afronte, ou quem o chame A ser-lhe testemunha quando mente, Nunca se ouve entre nós com fúria infame E só de o imaginar se assombra a gente. Raro quem o adore ou quem o ame; Mas mais raro será quem, insolente, Tenha do sumo Ser tão cega incúria Que trate o nome seu com tanta injúria. LXIV De externo culto a Deus há pouco indício; Se não é no que estimas bruto engano De fazermos cruento sacrifício, Não do sangue brutal, porém do humano. Vejo à luz da razão que é feio vício Que ao instinto repugna por tirano; Mas matar quem nos mais o crime atiça Não é vitima digna da justiça? LXV Justiça do céu reconhecemos Contra quem delinqüente a profanasse; Pondo suplícios contra os maus extremos, E em justo sacrifício a pena dá-se. O malfeitor, o réu, quando o prendemos, Com sacro rito a cerimônia faz-se; Que quem no sangue ímpio a Deus vindica, Este o aplaca somente e sacrifica. LXVI A forma do governo por abuso Anárquico entre nós sem lei se oferece; Mas nos que fazem da razão bom uso Justa legislação reinar parece. Nem nos tomes por povo tão confuso, Que um público poder não conhecesse: Ha senado entre nós, sábio e prudente, A quem o nobre cede e a humilde gente. LXVII Vagamos sempre e nunca um firme assento Nos deixam ter da caça os exercícios; Buscamos nela os próprios alimentos, E habitamos onde a há ou dela indícios. E estes são de ordinário os fundamentos De ocupar-nos em bélicos ofícios. Verás as gentes em contínuo choque Sobre a quem o terreno ou prata toque. LXVIII Em várias castas e nações diversas Dividido o sertão vagar costuma; E, bem que vagabundas e dispersas, Confederam-se as tabas de cada uma. Em guerra e paz e em sedições perversas Ao pátrio nome não se nega alguma; E, se o senado o quer, por justos modos Põem-se todos em paz e armam-se todos. LXIX São nos senados membros e cabeças Os velhos sábios capitães valentes, Os que têm socorrido em grandes pressas Com conselhos à pátria mais prudentes: Destes as ordens dimanando expressas, Um só se não verá nas nossas gentes Que rompa, não cedendo a potestade, Este laço da humana sociedade. LXX Destes uns da suprema divindade Ministros são, que nos festivos dias, Fazendo-se qualquer solenidade, O povo exortam com lembranças pias: Honram cantando a eterna majestade, Com sons, que para nós são melodias; Coisas, que se Anhanhá corrompeu tanto, Vê-se que nascem de princípio santo. LXXI Estes chefes do culto venerando Mantém-nos a oblação do povo crente; São mestres santos e, por nos orando, O lume da razão mostra evidente Que, em tão sublime ofício ministrando, Têm direito a que o público os sustente; Pois neles é mais justo que a lei valha De comer cada um donde trabalha. LXXII Punimos o homicídio; quem mutila, Quem bate ou fere não evite a pena: A sentença ele a dá. Deve subi-la, Qual foi a culpa, com justiça plena: Quem matou morrer deve: assim se estila, Por lei sagrada, que a eqüidade ordena. Quem cortou pé ou mão, braço ou cabeça, No pé, no braço e mão tanto padeça. LXXIII A fé do matrimônio bem declara Que o vago amor a lei ofenderia; Se se pudera usar sem que um casara, Quem é que neste mundo casaria? Deve morrer quem quer que adulterara; Sem isso quem seu pai conheceria? E o que extermina a pátria potestade Quem não vê que repugna a humanidade? LXXIV Quem pai ou mãe conhece com incesto, Ou quem corrompe a irmã, padece a morte: Nos ofícios dos pais é manifesto Que confusão nascera desta sorte. Ser a filha mulher não fora honesto, Dominando em seu pai como consorte: Se o irmão no matrimonio à irmã seguira, Sempre o gênero humano mal se unira. LXXV Deve a humana geral sociedade, Para gozar da paz com doce laço, Vincular dos mortais a variedade De um consórcio feliz no caro abraço. Deu-nos o céu por órgão da amizade, Deu-nos como outra mão, como outro braço, A consorte, em que o amor com fé excite, Não por pasto brutal de um apetite. LXXVI E houvera sem prisão que tão suave, Dominando entre os homens desde o Averno A discórdia cruel e a inveja grave, A conter-se o himeneu no amor fraterno. Nasce do amor a paz: o amor é a chave, É o doce grilhão, vínculo eterno, Que, se o vil interesse algum desune, Os peitos abre e os corações nos une. LXXVII Movidos deste fim por são costume, Julgaram nossos pais na antiga idade Que se ofende no incesto o impresso lume, Como contrário à paz da sociedade. E, se do céu preside o santo Nume Ao sossego da triste humanidade, Quem duvida que estime pouco honesto Conhecer-se os irmãos com feio incesto? LXXVIII Entre nós, quem elege a esposa amada Pede ao pai ou parente; e, sem pedi-la, Não se julgara a fêmea desposada, Por deixar a família assim tranqüila; Que, se órfã fosse acaso abandonada, Só pertence ao vizinho o permiti-la E, convindo ou seu pai ou seu parente, É sem mais matrimônio de presente. LXXIX Furto entre nós não há: de que há de havê-lo? O que há, come-se logo; e, sem que o enfade, Um tira doutro o que acha, por comê-lo; E anda ao pé da pobreza a caridade. A calúnia, a traição, o amargo zelo Tem por pena a comum inimizade: Nem há, se o entendo bem, maior castigo Que o mundo todo ter por inimigo. LXXX Outra lei depois desta é fama antiga, Que observada já foi das nossas gentes; Mas ignoramos hoje a que ela obriga, Porque os nossos maiores, pouco crentes, Achando-a de seus vícios inimiga, Recusaram guardá-la, mal contentes. Alas da memória o tempo não acaba, Que pregara Sumé, santo emboaba. LXXXI Homem foi, de semblante reverendo, Branco de cor, e, como tu, barbado, Que desde onde o sol nos vem nascendo, De um filho de Tupá vinha mandado; A pé sem afundar (caso estupendo!) Por esse vasto mar tinha chegado; E na santa doutrina, que ensinava, Ao caminho dos céus todos chamava. LXXXII Com grande mágoa ignora-se o que disse, Mas não se ignora que da santa boca Um conselho utilíssimo se ouvisse De plantar e moer a mandioca; Que havia de tornar também predisse, Desde o céu a que amigo nos convoca, E na terra ou no céu, que ele estivera, Eu o iria a encontrar, se ele não viera. LXXXIII Contam que, quando aos nossos cá pregava, Poder mostrara tal nos elementos, Que às ondas punha lei, se o mar se irava, E de um aceno só domava os ventos. Os matos se lhe abriam, quando entrava, E os tigres feros, a seus pés atentos, Pareciam ouvir como a outra gente, Festejando-o coa cauda brandamente. LXXXIV As águas donde quer, em rio ou lago, Se as chegava a tocar com pé ligeiro, Não pareciam do elemento vago, Mas pedra dura, ou sólido terreiro, Só com chamar seu nome, cessa o estrago, Se o furacão com hórrido chuveiro, Quando na nuvem, negra se levanta, Ou derriba a cabana, ou quebra a planta. LXXXV Porém, negando às pregações o ouvido, Vinha o caboclo do sertão mais bruto Contra o justo Sumé, de Deus querido, A matá-lo comê-lo resoluto. Pudera ele fazer, sendo ofendido, Que eles colhessem da cegueira o fruto; Mas pede só prostrado a Deus que o c'roe, E que a ignorância aos míseros perdoe. LXXXVI Os feros, pois, na fúria contumazes, Tomam as frechas, e bramindo atiram; Mas (quanto pelos teus, Tupá, não fazes!) Contra quem atirou pelo ar se viram. E nem assim se mostram mais capazes Dos anúncios de paz que entanto ouviram. Deixa-os Sumé, e um rio aborda cheio, E só com pôr-lhe um pé partiu-o ao meio. LXXXVII Contam (e a vista faz que a gente o creia) Que, onde as correntes d’água arrebatadas, Se vão bordando com a branca areia, Ficaram de seus pés quatro pegadas; Vêem-se claras, patentes, sem que a veia As tenha d'água no seu ser mudadas; E enxerga se mui bem sobre os penedos, Toda a forma do pé com planta e dedos." LXXXVIII Assim Gupeva concluiu, dizendo, Nem mais tempo ao discurso haver podia, Por aviso, que os campos vem batendo Turba inimiga em vasta companhia: - Às armas, grita, às armas! E o céu horrendo, Retumbando nas árvores sombrias, Fez que as mães, escutando os murmurinhos, Apertassem no peito os seus filhinhos. LXXXIX " Não te espantes, diz Diogo; não alteres A paz dentro as cabanas belicosas; Enquanto novas certas não souberes, Basta pôr guardas nos confins forçosas. De noite não te empenhes, se temeres Que te invadam com tropas numerosas, Põe-te na defensiva, e bem que treme, Quem te busca de noite e quem te teme. XC Quanto mais que o trovão nas mãos preparo Contra teus inimigos neste afogo; Nem duvides que logo que o disparo, Tudo em chamas não vá, tudo arda em fogo." Disse, e ao favor saiu de um luar claro, Disparando o mosquete em márcio jogo; E enquanto atira todo o bosque atroa Pelo horror da buzina com que soa. XCI Qual dos monos talvez tropa nojosa, Saiu do int’rior mato em negro bando; E, se a frecha um derriba, vai medrosa, Em fuga pelas árvores saltando: Tal, ouvindo a buzina pavorosa, E o arcabuz com trovão relampagueando, Correm, caem, despenham-se na e estima De que o céu todo lhes caía em cima.
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