About: dbkwik:resource/7dye6Zk-RlMIvfzOmRVsng==   Sponge Permalink

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  • A Conceição
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  • Venturosos aqueles, sim aqueles, que a vista levantando a toda parte, vêem os grossos chuveiros, vêem as ondas, as ondas furiosas que se espraiam, que inundam as campinas, que submergem as serras levantadas; que não poupam, que não respeitam nada: mas divisam uma arca mais extensa, e mais segura que foi a de Noé, em que se metam, e suas vielas salvem, bem que a onda, umas vezes descendo, outras subindo, umas vezes os leve ao baixo fundo que tem o mar cavado, e outras vezes sobre si os levante, até que cuidem que sobem a tocar nos próprios astros. Venturosos aqueles que descobrem esta arca salvadora, mui distante das terras em que vivem: mas que podem gozar do seu amparo, apenas queiram para ela encaminhar ligeiros passos: mas inda mais ditosos os aflitos, que querendo salvar-se de um naufr
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  • A Conceição
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Autor
  • Tomás Antônio Gonzaga
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  • Venturosos aqueles, sim aqueles, que a vista levantando a toda parte, vêem os grossos chuveiros, vêem as ondas, as ondas furiosas que se espraiam, que inundam as campinas, que submergem as serras levantadas; que não poupam, que não respeitam nada: mas divisam uma arca mais extensa, e mais segura que foi a de Noé, em que se metam, e suas vielas salvem, bem que a onda, umas vezes descendo, outras subindo, umas vezes os leve ao baixo fundo que tem o mar cavado, e outras vezes sobre si os levante, até que cuidem que sobem a tocar nos próprios astros. Venturosos aqueles que descobrem esta arca salvadora, mui distante das terras em que vivem: mas que podem gozar do seu amparo, apenas queiram para ela encaminhar ligeiros passos: mas inda mais ditosos os aflitos, que querendo salvar-se de um naufrágio, que sobre erguidas serras já se espraia, sem largas diligências, sem fadigas a podem encontrar em toda parte: em qualquer parte sim, aonde estejam, e levantem aos céus, que a todos ouvem, Imagem:Separator.jpg que te ergueram em Chipre, mais em Pafos; sobre as infames piras, onde o filho as chamas devorantes ascendia com o vento da boca, e mais das asas. Ainda isto, que disse, é tudo pouco: queimei o coração, que é mais que tudo, e dei ao pé de ti suspiros tantos, tão fortes, tão ardentes, que puderam fazer incendiar os frescos ares. Quantas vezes a mãe do cego infame vendo tantos extremos, invejosa só para não os ver, voltou a cara? Quantas vezes se irou com o seu filho porque era disto a causa, e lhe pedia que a sua honra vingasse, e me ferisse com outra penetrante, oposta farpa? Quantas vezes o filho por mostrar-lhe a falsa submissão lho prometia, e depois de voltar à mãe as costas a todas as promessas lhe faltava? Verti sangue, verti; queimei as reses. Provera o pio céu que o não vertesse, provera o pio céu que as não queimasse! Ah como estou diverso! Muitas vezes depois da feia noite tormentosa aparece a manhã serena, e limpa, seguida por um sol ardente, e claro. Muitas vezes aquele que se via já quase moribundo, vê seu corpo vigoroso, e robusto, e só por isso que morto se julgava, e que reputa a vida, e a saúde um bem celeste que não tem outra dita a quem se iguale. Venturoso daquele, que já pode Imagem:Separator.jpg A protetora Palas, que não pode sofrer a corrupção dos Portugueses, a quem pelo valor, que ousados mostram, como um povo de heróis estima e preza. Esta Deusa propícia receando o encontro segundo que ajustaram com as ninfas de Vênus, que só buscam nos peitos acender-lhes vivas chamas, a fim de que se esqueçam de vitórias, de tesoiros, conquistas, e de palmas, que são os bem sublimes, por que sempre os peitos Portugueses se abrasaram. Esta Deusa que sabe que um veneno, bem que ele seja fraco, repetido por diversas porções, inficiona o sangue pouco a pouco até que mata: intenta socorrer os Portugueses com empenho tão forte, que cogita quando isto necessário, defendê-los lutando com a mesma Deusa Vênus, que perdê-los intenta, braço a braço. Quanto tem de formosa a sã virtude! que até quando se esfria ainda encontra no peito protetor o forte amparo dirigido a que as forças já perdidas de novo se restaurem, ou que ao menos essas pequenas forças que inda restam com repetidas quedas não se acabem. Apenas viu a Deusa que os guerreiros alegres se aprontavam por que fossem à vizinha cidade atrás do encanto e fingidos prazeres que esperavam. Ela muda o seu rosto, e muda o traje; toma o traje modesto, mais o rosto de um seu próprio ministro douto, e grave, que os expostos guerreiros acompanha. Mal mudou o semblante foi meter-se no meio dos já prontos navegantes. O semblante carrega, e apenas fita nos seus rostos a vista assim lhes fala. Que é isto, Portugueses? Vós correndo aos prazeres de Amor? A uns prazeres que afrouxam dos heróis as fortes almas? que voltam os leões, e mais os tigres numas pombas cobardes, que não podem fazer outro serviço que não seja o conduzir da mãe o torpe carro? Quem entrega os seus braços às cadeias que lhe bota a beleza inerme e fraca pode ter a constância que é precisa para se expor aos riscos de um combate? Para ver junto aos muros altos montes de corpos inda quentes palpitando, de amigos, e parentes; uns vertendo aos borbotões o sangue; outros sujos de negro pó a dar finais arrancos, sem que feche de horror os olhos turvos? Sem que volte também ao sítio a cara? Pois isto, Portugueses, inda é pouco? Terá, terá valor, terá virtude, para correr ao muro, e sobre o corpo até do próprio pai firmar a escada? Subir, e já disposto a que não deve deixar os seus degraus, sem que consiga o muro cavalgar, ou sem que dele precipitado caia, dando aflito o último suspiro sobre os ares? Os jardins, Portugueses, só produzem as flores sem valia. O loiro, a palma que servem para insígnias do heroísmo só se cortam nos sítios que se regam com rios de suor, e mais de sangue. Enquanto a Protetora assim dizia os fortes portugueses increpados se olhavam confundidos, e as rosetas que a vergonha levanta lhes subiam sobre as modestas faces: então Palas que via estes efeitos da virtude que estava adormecida, conhecendo que ainda as suas vozes poderiam ter forças de cautério que avivassem os brios outra vez das frouxas almas, fitando com mais força a vista neles reforça, e continua desta sorte a interrompida fala. Portugueses: Cupido fez de Aquiles zombaria fazendo com que Aquiles se assentasse no estrado das belezas, que o cercavam? que despindo o arnês vestisse a saia? que pusesse à cintura a roca indigna tirando da cintura a mesma espada e vós, Portugueses (com que custo este nome vos dou), vós, Portugueses, julgais que podereis chegar às chamas sem que elas vos abrasem? Por ventura vós sois melhores do que foi Aquiles? Tendes almas mais fortes? Sois mais sábios? Os vossos Patriotas, que inda existem, Portugueses no nome, e mais nas obras, estarão combatendo os inimigos vertendo o ilustre sangue, e vós, Lusos, gastais o vosso tempo a enfeitar-vos para ir, quais Narcisos, às campanhas de Vênus, e Cupido? Estareis surdos? Estareis insensíveis? Não vos movem as vozes dos amigos, e parentes que ao socorro vos chamam? Portugueses, para gozar deleites, para estardes nos braços das belezas, carecíeis cortar os tormentosos, verdes mares? Não há também belezas em Lisboa? Não tem, não tem recreios vossa pátria? O valor, Portugueses, não se alcança por serem nossos membros só nutridos com nervos de serpentes, e tutanos dos ursos, e dos tigres: quem pretende ter valor, e virtude é necessário ganhar essa virtude e valentia por meios concernentes: sim, ó Lusos, não deve obrar ação sem que primeiro a sua ação conheça, e sem que faça nas leves conseqüências que ter pode maduras reflexões em tudo sábias, abrindo o coração a quanto pode a virtude excitar: fechando o peito a tudo quanto pode corromper-lhe os são desejos que residem n'alma. Enquanto a protetora discorria desta maneira forte, os Portugueses, pondo no chão os olhos, não diziam unia palavra só, e muitas vezes sentidos suspiravam, forcejando por que a sábia Deusa não sentisse os ardentes suspiros que eles davam. A Deusa, que isto observa, continua desta sorte o discurso. Portugueses, se quereis ir aos brincos tão impróprios do guerreiro caráter, ide embora: porém debaixo ao menos de um disfarce. Imitai, imitai o bravo Aquiles, depondo os ferros, e vestindo as saias. Eu irei procurar os bons patrícios, eu assim lhes direi... Valentes Lusos, não olheis para a barra. Os companheiros ficarão engolfados nos prazeres próprios das frouxas almas. Ide à guerra. Combatei os guerreiros que vos chamam, fiai-vos no valor dos próprios braços: vencereis, e tereis a glória toda, que os vossos patriotas não pretendem entrar na partição das vossas palmas. Repartiu-se a campanha: a vós pertence soldados combater, soldados homens, inimigos da pátria: a eles toca os peitos combater de inermes damas. E de damas vencidas, sim daquelas que buscam nas vitórias os remédios que lhes curem do peito as vivas chagas. Uma vitória destas, bem que fosse na verdade vitória, só faria ao peito generoso muito infame. Quando a honra tivermos de dobrarmos ante o trono os joelhos, mostraremos ao nosso Augusto os peitos; porém como. Os nossos peitos nus, cobertos todos de feridas honradas; e os seus peitos cobertos com as fardas nunca rotas e de mimosas flores enfeitadas. Fujamos, Portugueses. deste Porto, que é um porto empestado: sim fujamos. Não queirais que correndo atrás da glória, só venhamos buscar a nossa infâmia. Apenas isto disse, a Deusa os cobre com seu brilhante escudo, que trazia sem que os guerreiros vissem, no robusto, no firme esquerdo braço. Neste instante os tentados guerreiros recuperam o seu quebrado esforço, qual a planta abatida do sol, que mal recebe os orvalhos que nutrem, se levanta: ou qual vergôntea nova, que se inclina à violência do peso, e apenas sente o peso de si fora, já se move, de novo se apruma sobre os ares. A Deusa, que lhes nota o novo alento, o seu semblante alegra, e já risonha lhes fala desta sorte. Portugueses, a virtude dos homens é sujeita a despenhar-se em faltas. O sol mesmo não brilha sempre igual: as suas luzes que são no meio-dia tão intensas, quando nasce, e se põe, já são mais fracas. Os justos também erram:: mas dos erros só tiram argumentos da fraqueza que os fazem mais prudentes, e mais sábios. Os Deuses são somente os que são justos em todo o tempo, e parte. Aquele peito que menos vezes erra é entre todos quem se mostra em segui-los mais exato. Fujamos, Portugueses, deste sítio: que se hoje inda podemos fugir dele amanhã pode ser que a enfermidade as forças nos consuma, e não possamos, qual o enfermo que corre à sepultura se o seu mal no princípio não se atalha. Os Lusos navegantes que isto escutam na já frouxa virtude mais se inflamam: os deleites desprezam, e se haviam à cidade correr, depõem as galas. Uns sobem para as vergas, e desferram os enrolados panos: outros correm ao grosso cabrestante, e nele enrolam a corpulenta amarra. O lenho vira, põe para a barra a proa, e já navega rompendo sossegado as mansas águas. Ó Deusa valerosa! que proteges os da minha nação, e mais a quantos os buscam imitar no esforço d'alma! Eu não tenho cem toiros, que degole nos teus santos altares; porém posso cantar os teus louvores, que isto vale muito mais do que vale o sacrifício em que se alaga o chão de quente sangue. Vênus, que tudo observa, em iras arde, corre à vizinha praia, busca o nume que no porto preside e assim lhe fala. Já não me chames Vênus; nem ainda como Deusa me trates. Noutro tempo bastava o ver meu rosto para ver-se o mar; em que nasci, envolto em chamas. Tenho vencido os Deuses; mas agora já não tenho poder sobre os humanos. Queria mais dizer: mas os suspiros lhe cortam as palavras. A Deidade que preside no porto, surpreendida deste estranho sucesso nunca visto, pretende consolá-la: mas debalde, que quanto mais o busca, mais excita a força impia do corrente pranto, qual menino mimoso, que suspira inda mais, quando a mãe lhe faz afagos. Apenas o tormento lhe permite um pequeno repouso, o Deus do porto com sentido semblante assim lhe fala. Que é isto, ó grande Vênus? Tu suspiras? Tu aflita desmaias? Porventura no céu, aonde habitas, também pode entrar motivo que produza a mágoa? A Deusa lhe responde: Sim, no Império também entra o ultraje, e há de sempre entrar no céu o crime, enquanto Jove o castigo poupar do ousado humano. O Nume se horroriza e assim lhe torna. E Jove já não tem ardentes raios? Ou se os tem. já não quer punir ofensas que aos mesmos céus ultrajam? Quem te insulta ao ver que um tal delito não tem pena, não pode aos seus insultos animar-se? Esse peito insolente, que te ultraja, é livre do furor e da justiça do teu potente braço? Dize, aonde está o teu Cupido? As suas setas só têm poder nos peitos inocentes; para punir os peitos que te insultam não têm mãos, não têm forcas, não têm armas? Os ultrajes da mãe não são ultrajes que ao filho honrado abraçam? Vênus, dize, quem é, quem é o monstro, que te falta ao devido respeito. A ser daqueles que estão nas minhas águas, te seguro um desagravo tal, que servir possa de freio e de escarmento aos mais humanos. Assim; ó grande Deusa, assim o juro pela sagrada Esfinge, a quem não falta nem o supremo Jove. Eu também tenho na tua ofensa parte; pois ainda que sejas uma Deusa de outra esfera, nasceste como nós também das águas. A Deusa assine responde. Eu bem conheço que tens um coração em tudo digno de ser o coração da Divindade que manda as águas deste porto extenso. Se tu assim não foras, não viera buscar agora em ti o desagravo da minha própria ofensa. Aquele, aquele que ali vês ancorado é o navio que excita a minha raiva. Enquanto a Deusa estas vozes dizia, com o dedo apontava o navio Marialva. Eu quero, eu quero ver este navio (continua a dizer) naquelas pedras em vingança quebrado. Aqueles homens ao meu favor ingratos se atreveram a voltarem as costas aos prazeres que eu mesma lhes buscava. Que mais queres ouvir da minha boca? Sou Divina, estou queixosa deles. Este agravo pede a justa vingança, e isto basta. Se os homens não temerem os celestes, dentro em mui pouco tempo não teremos nem templos, nem altares. Isto é pouco: pararão sobre a terra os sacrifícios, e talvez se convertam nos ultrajes. O Nume lhe responde. Ó Deusa! Os Lusos são senhores do porto, e eu os amo. Mas isto nada Importa. A tua ofensa deve ser preferida, pois que vence sem menor exceção os outros males. Nem pode ter valia o sacrifício se a mão, que ao ar levanta o ferro agudo, as reses avalia em pouco, ou nada. Apenas isto disse, as águas fere com o cetro, que traz: as águas correm com força nunca vista, e arrebatam o grande Marialva sobre as pedras, que rodeiam a ilha dilatada, que da grande cidade está defronte, e é uma fortaleza guarnecida que da Ilha das Cobras tem o nome. O navio se salva por influxo da protetora Palas: vai dar fundo num lugar à saída acomodado, que o Poço se apelida: novamente as águas o arrebatam e vão pô-lo em cima da restinga pedregosa que parte como uma ilha inculta e breve que o nome tem dos Ratos. Toca o leme na encoberta restinga, e se levanta. A gente, que o guarnece, se perturba. Corre à popa da nau a grande Palas: põe os olhos acesos na corrente; a corrente parou, no mesmo instante. O leme levantado cai e torna ao primeiro lugar aonde estava. O navio do sítio se retira, dá fundo noutro sítio mais seguro, de mais fundo, e mais limpo, e desta sorte deste segundo risco enfim se salva. Apenas o navio lançou fundo em lugar oportuno, a justa Deusa ao portaló se chega. e estas vozes soltou do fundo peito ardendo em raiva. Ministros desse Nume, que perturba deste porto o sossego, moderai-vos. Dizei ao vosso Nume que repita a essa injusta Deusa, a quem agrada, este fiel recado. Quem procura os caminhos da glória, só merece das mãos dos altos Deuses, que são justos, benigna proteção, e não estragos. Que se isto a meio modera, que eu lhe digo que ponha as suas forças por que busque dos Lusos a desgraça; pois as minhas estarão vigilantes a salvá-los. Que se ela é uma Deusa, eu sou o mesmo, E sendo ambas iguais, bem poderemos medir as nossas forças braço a braço. O navio levanta finalmente o grosso unhado ferro: os mares corta, e sai do porto infausto. Tu, ó Palas, defende os Portugueses, que eles correm atrás do seu naufrágio. Sim, que as Deusas, inda que Densas sejam, são mulheres: mulheres que não deixam que se curem as chagas do rancor, quando elas nascem da injúria da beleza, bem que corram depois da chaga aberta os longos anos: os anos sim, os anos, que consomem as mais profundas chagas, que se abriram pelas ousadas mãos dos mais agravos. Valerosos Guerreiros, animai-vos: que os peitos virtuosos, que padecem em ódio da virtude, por fim podem dos males triunfar, e quando chegam os dias do triunfo, ó quanto, ó quanto formosos lhes parecem os trabalhos! Não é digno das ditas quem não pensa que as ditas são uns bens que os céus fizeram para prêmio dos peitos sofredores, que mostram os seus rostos sempre inteiros no fundo abismo dos maiores males. No dia, que era o sexto da viagem, a ofendida Vênus determina tomar vingança nova: sobe ao carro que puxam brancas pombas: rompe os ares, a Éolo procura, mal o encontra, lhe fala deste modo... Ó Rei potente, de cujo arbítrio pende a sorte toda de quem o mar navega. Escuta, escuta as queixas de uma Deusa maltratada; dá-lhe o remédio que te pede, e pronto. Eu tenho imensas ninfas, e na terra não acharás belezas que se possam com elas comparar. Se me servires no que te peço agora, eu te concedo o número de nove, e também deixo só na tua eleição a sua escolha. O Rei assim lhe diz ... ó Deusa bela, a paga, que me ofertas, é mui grande mas por isso, que é grande, eu a contemplo à honra injuriosa. Dize, ó Vênus, para que eu te obedeça é necessário que tu me incites c'o valor do prêmio? Eu hei de, ó grande Vênus, comprazer-te sem olhar para a paga; pois não quero que ela tire o valor ao meu serviço mudando o meu serviço em vil contrato. Contudo, grande Vênus, não me exponho a que te persuadas que eu desprezo vaidoso a tua graça. Sim, eu quero, eu quero que entre nós se aperte o laço de uma estreita amizade; entrar na conta daqueles que compõem a tua casa. Alcançando este bem, não tenho, ó Deusa, mais outro bem igual, aonde possa bater o meu desejo ás suas asas. Escolhe entre essas ninfas que me ofertas aquela que quiseres; que eu procuro fazer-te um sacrifício mais completo dá rendida vontade: à que me deres sem reparar qual seja, eu hei de dar-lhe por ser escolha tua alegre está alma. A Deusa lhe responde - Ó Rei, eu tenho uma ninfa que é bela, conhecida pelo nome que tem de Danopéia. Não te quero afirmar que a todas vence na beleza, e nas graças; que estes dotes não têm nos olhos todos igual peso. Só te afirmo que ela é entre as mais todas a quem mais amo, e prezo. Danopéia será, será, ó Rei, aquela ninfa que deste feliz dia para sempre com dobradas prisões nos una, e prenda. O Rei assim lhe torna. Eu já me abraso nos ardentes desejos dessa posse; porque sendo esta escolha escolha tua não pode escolha haver mais digna e nobre. Mas nós, ó grande Deusa, depusemos de parte o teu negócio. Vênus, Vênus este insulto perdoa; e por que possas perdoar-me este insulto, ah tu repara que a causa dele não foi minha toda! Deixemos os ajustes, Deusa, fala, que quando se cogita da vingança que procuras tomar aos teus insultos, não é, não é decente, ó grande Deusa, que o tempo se consuma em tais contratos. A Deusa o modo atento lhe agradece e prossegue a queixar-se assim dizendo. Aqueles Portugueses que navegam no leve Marialva, me fizeram uma afrontosa ofensa. Mal chegaram à corte do Brasil, busquei fazer-lhes alegres seus trabalhos. Fui eu mesma... O Rei, que estas palavras escutava, lhe interrompe o discurso assim dizendo. Suspende á voz, ó Deusa, que eu não posso consentir que me contes teus sucessos sem que nisso te ofenda. Se eu quisesse saber os teus agravos para dar-lhes castigo equivalente, me faria desta sorte o juiz dá tua ofensa. Tu és só o juiz, e és só por isso quem à pena lhe arbitra: a mim só toca fazer executar qualquer sentença; e em ser executor do que mandares já tenho glória, que não é pequena. A Deusa novamente lhe agradece uns tão puros desejos, que se fazem mais dignos de valor por se explicarem por tão urbanos termos. Depois disto seus desejos explica assim dizendo. Despede, ó grande Rei, o vento irado; açoita este navio: agita os mares e bate o seu costado: faz nele os estragos maiores; mas não mandes que estes estragos passem ao excesso de o fazer submergir nas verdes ondas. Não cuides, grande Rei, que o meu pedido assenta em piedade; pois assenta nos desejos ardentes que me abrasam de querer despicar a minha afronta. Eu quero que estes Lusos não acabem; porque quero acabá-los pouco a pouco ao peso sucessivo dos trabalhos, que é mal inda pior que a mesma morte. O Rei assim lhe torna... ó Deusa, espera, espera um breve instante por que vejas que o teu pedido é ordem, e tal ordem, que bem que o coração se oponha a ela, tem sempre execução inteira, e pronta. Apenas isto disse, o cetro move; fere um grande penedo que servia de robusto postigo a uma cova onde encerrados tem os ventos todos, por que dela não saiam sem que tenham para saírem dela expressas ordens. Mal tocou o penedo com o cetro, retirou-se o penedo ao lado um pouco, e mal se afasta a pedra, sai bramindo o furioso Noto. Os outros ventos no profundo da casa se revolvem, e vêm como em tropel também correndo para a pequena porta. O Rei previsto o seu cetro maneia, e com a ponta fere a pedra de novo; a pedra corre e caminha a tapar a negra cova. O Rei se vira ao Noto, que inda firme as ordens esperava, e carregando o rosto respeitoso assim lhe fala. O que Vênus mandar, que tu lhe faças, isso deves cumprir exato, e pronto: reputa os seus preceitos os meus próprios. Não digo bem. Reputa os seus preceitos que os meus próprios preceitos mais forçosos, que eu posso perdoar se me faltares; faltando a ela perdoar não posso. A Deusa e mais o Noto vão seguindo O rumo do Brasil, e já descobrem o grande Marialva que rompia, como quem de tormenta não pensava, com todo o pano cheio as mansas ondas. Apenas viu a Deusa o Marialva subiu-lhe a cor as faces, e apontando para ele com o dedo, ao vento o mostra, e soltando um suspiro assim lhe fala. Aquele é o navio em que navegam os loucos Portugueses que me ultrajam. Despica, pois é tempo. a minha afronta: agita os mansos ares, que lhe rompam as velas desrinzadas; move as ondas, que açoitem seu costado. Veja o mundo, que se tem atrevidos que me insultem, eu tenho também ondas, e mais ventos, que vinguem meus ultrajes; e se forem outros meios precisos, terei inda os ministros do céu, que são os raios. Apenas isto disse a Deusa busca do sitio retirar-se: talvez fosse para evitar impia que os lamentos, mais os humildes rogos dos aflitos, não pudessem fazer que se abrandasse o fogo em que se abrasa o duro peito. Mal do sítio se aparta, o fero Noto a vingança começa: alarga, e enche as rugosas bochechas; curva o corpo, põe na cintura as mãos: respira, e sopra. As águas pouco a pouco se encapelam; E dentro em pouco tempo está formada a tormenta medonha. O bom piloto, ao catavento firme, agora manda que o leme se alivie: agora ordena que se meta de encontro. Os joanetes e mais as grandes gáveas já se arriam para assim se quebrar do impulso a força. Os punhos do traquete e mais da grande ligeiros se carregam; os mancebos pelas escadas sobem por que ferrem as já descidas velas que, batendo, os mastaréus açoitam: quais se fazem em mais velas partidas, quais rompendo as bem atadas cordas que as seguram as longas vergas pelos ares voam. Não se escutam senão sentidas vozes de quem manda, e trabalha, e o sussurro do Noto furioso, que assobia nos moitões e nas cordas, misturado c'o sussurro também das bravas ondas. Uma onda se levanta mais crescida e se deixa cair com toda a força na proa do navio. O grande beque depois de levantar-se sobre as nuvens desce ao profundo infernos já vem outra mais forte que a primeira, nele bate, e o grande beque treme: já se enrolam a terceira, e a quarta, e não podendo o beque resistir a tanta força um grande estalo deu e fez um rombo apesar das cavilhas, que o sustentam. Com a vitória o Noto mais se alenta: aperta os beiços outra vez de novo, ajunta mor porção na. funda boca dos comprimidos ares; quer soltá-los e neste mesmo instante ao mal acode a Deusa Protetora. Corre, e chega ao portaló que está de barlavento, e toma o seu semblante. Aqui se mostra já como Deusa Palas, aos contrários, ao mar embravecido, e ao fero Noto. O Noto mal conhece a grande Deusa turbado se confunde, e sacudindo as negras asas, deste sítio foge. Mal o vento se ausenta, os verdes mares aplacando se vão, já se convertem em mares de bonança e já parece que de cansados dormem. O Moreira um só pequeno instante não sossega, e sem que perca o tempo determina que se passe a fazer aos graves danos que a tormenta causou, o necessário, o possível conserto. A ordem sábia com prontidão se cumpre, e sem falência. Ao beque já se lançam duras cordas que o fazem reduzir ao velho estado. Depois de reduzido se lhe pregam firmes castanhas, três de cada parte. que fortes o sustentam Pela proa sai o deitado mastro, e este mesmo também solto ficou, porque faltara o beque a que se prende. Já lhe passam uma forçosa trinca, que o segura ao beque consertado, e além da trinca o seguram também com grossos cabos. Depois que o mar serena se descobre uni mui formoso carro que voava sobre as já mansas ondas, mais ligeiro que as setas voadoras. Ele vinha puxado por Delfins, em cuja conta não entrava o Delfim astuto e sábio que ajustou de Netuno o casamento com a bela Anfitrite, que este em prêmio está nos altos céus mudado em astro. Em cima deste carro majestoso se assentava Anfitrite, e o seu semblante enchia de prazer o ar em torno, enchia de prazer também os mares. As ninfas, que este carro acompanhavam, mil círculos faziam sobre as ondas só por darem prazer à sua Deusa; umas vezes nas águas mergulhavam as erguidas cabeças e surgiam dos rostos apartando os seus cabelos. Outras vezes corriam à porfia as águas dividindo com os peitos. Quais depois de cansarem se apegavam ao carro de Anfitrite; quais imóveis nas águas se sustinham e formavam uma bela alcatifa matizada da cor do mar e corpos, branca, e verde. Os peixes sobre as águas se moviam saltando de contentes, e as famintas gaivotas, que voam, não desciam dos ares mansos a pegarem neles. Até os mesmos peixes inimigos, amigos se mostravam, nem os grandes sustentar-se buscavam nos pequenos. A esta Deusa segue um vento brando que os ares refrescava; e muitas vezes pasmado na beleza do semblante se esquecia bater as leves asas. Move-se o catavento: os navegantes desferram o seu pano, e vão seguindo o rumo para as costas Africanas compensando com esta nova dita todo o desgosto dos passados males. Os Lusos navegantes atravessam o cabo Tormentoso, a quem diria que houveram de passar com mansos mares um sítio, a quem chamaram tormentoso à triste custa de desgraças tantas. Aqui se aprontam todos para verem o deforme gigante, que pôs medo ao mesmo ousado Gama; porém ele só de longe aparece, e levantando sobre o sereno mar o corpo imenso, em profético sorri assim lhes fala. O que fazer não pude farão outros, que eu tenho quem despique o meu ultraje. O deforme gigante que preside neste medonho cabo é um gigante de uma estatura imensa. Os seus cabelos são limos estirados que lhe descem pelo grosso costado, e são de limos também as suas barbas, que lhe pendem, e tocam da cintura muito abaixo. A testa é espaçosa, e atrás cingida com folhas de espadana: as sobrancelhas compridas e fechadas. Os seus olhos acesos, e rasgados: beiços grossos; como troncos as pernas, pouco menos os dois nervosos braços. O seu corpo tão forte, e tão fornido, que pudera suster o céu inteiro, se o céu todo nos seus fornidos ombros se assentasse. Traz na direita um pau, em que se encosta, que formado não foi de um grande ramo; mas de um crescido tronco. Se levanta a sua rouca voz o ar impele, vence o rijo trovão que o mundo assusta, e faz estremecer o inteiro monte. Os Lusos navegantes se perturbam mal ouvem tão funesto vaticínio: intentam aplacar o Deus Netuno com puros sacrifícios: não degolam os enfeitados toiros; mas derramam nas águas do seu mar o puro vinho. Netuno o sacrifício não aceita, que Vênus enfadada é como filha e a quantos animais beber puderam das águas com o vinho borrifadas, para o ódio mostrar tirou as vidas. Não pára nisto a força do seu ódio. Ele leva o navio sobre a costa da Ilha São Lourenço, aonde espera que o dano não evite: pois que corre sem que saiba que corre, e sem que possa prever, e acautelar tão certo risco. A protetora Palas, que vigia sobre os amados Lusos, não sossega. A ilha vai buscar, e sobre a praia acende uma fogueira. Os navegantes, mal este fogo avistam, estremecem. Conhecem que estio perto desta praia. Arreiam prontamente as soltas gáveas, com que só navegavam, e conservam todo o resto da noite a nau à capa. Com esta prevenção prudente, e justa apesar dos desejos de Netuno do naufrágio iminente a nau se salva. Ó Deusa sem igual! Ó grande Palas! Tu sim, tu sim proteges a Virtude: és uma Deusa de ser Deusa digna por isso mesmo, que a virtude amparas. Portugueses, correi pelo caminho da honra, e do valor: correi afoitos, como sempre correstes. Desta sorte, não tendes que tremer a dura sanha dos peitos inimigos, bem que sejam muito mais que os humanos. Portugueses, se uma mão se levanta contra o justo, há outra mão talvez mais forte ainda, que o dano, que ela busca, lhe repara, e não só lho repara: mas às vezes os trabalhos permite, por que o leve as ditas, e às venturas, que ela mesma por estes úteis meios lhe prepara.
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