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  • A Divina Comédia/Inferno/XXI
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  • Detemo-nos por ver a cava escura, Por ouvir de outros prantos vão sonido; Com pasmo olhei a hórrida negrura. No arsenal de Veneza, derretido Como referve o pez na estação fria Para reparo ao lenho combalido, Incapaz de vogar: qual com mestria Baixel novo constrói; qual alcatroa O que teve em viagens avaria; Qual pregos bate à popa qual à proa; Qual remos faz, qual linho torce ou parte; Qual mezena e artemão aperfeiçoa: Assim, por fogo não, por divina arte Betume espesso, ao fundo refervia, As bordas enviscando em toda parte. E ele trompa fazia do traseiro.
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  • Inferno, Canto XXI
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  • por Dante Alighieri, tradução de José Pedro Xavier Pinheiro
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  • Detemo-nos por ver a cava escura, Por ouvir de outros prantos vão sonido; Com pasmo olhei a hórrida negrura. No arsenal de Veneza, derretido Como referve o pez na estação fria Para reparo ao lenho combalido, Incapaz de vogar: qual com mestria Baixel novo constrói; qual alcatroa O que teve em viagens avaria; Qual pregos bate à popa qual à proa; Qual remos faz, qual linho torce ou parte; Qual mezena e artemão aperfeiçoa: Assim, por fogo não, por divina arte Betume espesso, ao fundo refervia, As bordas enviscando em toda parte. Mas no pez só na tona eu distinguia Borbulhão, que a fervura levantava, Que ora inchava, ora rápido abatia. No fundo enquanto os olhos eu fitava, Exclamando Virgílio: — Eia! Cuidado! — Para si donde eu era me tirava. Voltei-me então como homem, que apressado É por saber o que fugir convenha, De súbito pavor sendo atalhado, Olha sem que por isso se detenha, E logo atrás de nós eu vi correndo Negro demônio sobre aquela penha. Ah! que aspecto feroz! Ah! quanto horrendo Nos meneios parece e temeroso, Veloz nos pés e as asas estendendo! No dorso agudo e enorme um criminoso, Escarranchado, em peso, carregava: Dos pés prendia o nervo ao desditoso. — “Malebranche!” já perto ele bradava — — “Eis um dos anciões de S. Zita! Mergulhai-o, pois torna à gente prava, “Que nessa terra em grande soma habita. Venais todos lá são menos Bonturo. O no, por ouro, lá se muda em ita“. Ao pez o arroja, e pelo escolho duro Se torna: após ladrão tanto apressado Não vai mastim, que estava antes seguro: O maldito afundou; surdiu curvado. Sob a ponte os demônios lhe gritaram: — “Não acharás aqui Vulto Sagrado, “Nem banhos, quais no Serchio se deparam. Se não queres no pez star imergido. A te espetar as fisgas se preparam”. — Com croques cem mordendo esse descrido — “Bailar” — disseram — “deves bem coberto; Se puderes furtar, furta escondido”. — Tal ordem em cozinha o mestre esperto Aos ajudantes seus que na caldeira Mergulhem naco à tona descoberto. — “Por que” — falou-me o Guia — “alguém não queira Molestar-te em te vendo, busca abrigo: Num recanto o acharás desta pedreira. “Não temas que me ofenda o bando imigo; Muito bem sei como o furor lhe afronte; Já venci de outra vez igual perigo”. — Até o extremo então passou da ponte; Mas, quando a sexta borda já subia, Mister lhe foi mostrar serena fronte. Qual fremente matilha, que se envia Ao pobre, quando pára esbaforido E pede alívio à fome que o crucia: De baixo arremeteu-lhe o bando infido, Aceso em ira, os croques seus brandindo. Mas gritou-lhes: — “Nenhum seja atrevido! “Os croques suspendi: até mim vindo Me preste algum de vós atenção toda. Fere, se ousais porém antes me ouvindo”. Clamaram todos: — “Ouça — o Malacoda!” Enquanto os mais ficavam no seu posto, — “Que queres?” — disse alguém que sai da roda; E o Mestre: — “És, Malacoda, a crer disposto Que as ameaças vossas superasse Para aqui vir, se por celeste gosto E supremo querer não caminhasse? Deixa-me ir; pois a lei divina ordena. Que eu nesta agra jornada outrem guiasse”. De Malacoda o orgulho já serena; Aos pés lhe cai o croque; aos ais voltado Lhes disse: — “Este não pode sofrer pena”. E o Mestre me falou: — “Tu, que abrigado Estás entre os penedos cauteloso, Volve a mim, do temor descativado”. Corri para Virgílio pressuroso. Eis os demônios todos investiram: Roto o concerto, pois, cria ansioso. De Caprona os soldados, que saíram A partido assim vi que estremeciam, Quando envoltos de imigos se sentiram. Nos sevos gestos seus se me prendiam Os olhos, e a Virgílio vinculado Os braços o meu corpo todo haviam. Os croques inclinados: — “No costado Fisguemo-lo” — entre si dois prorromperam. E os outros: — “Oh! pois não! seja espetado!” Ao que o Mestre falava desprouveram Palavra tais, e então bradou depressa: “Sê quedo, Scarmiglione!” — Emudeceram. Depois assim nos disse: — “Andar por essa Rocha não podereis; jaz destruído Todo arco sexto sem restar-lhe peça. Se avante quereis ir, seja seguido Desta borda o caminho: não distante Está rochedo ao passo apercebido. “Ontem, cinco horas mais do que este instante Mil e duzentos com sessenta e seis Anos houve: é então a rocha hiante. “Dos sócios meus na companhia ireis; Vão ver se alguém ao banho quer furtar-se. Ide em paz: molestados não sereis. “Calcabrina, Alichino vão juntar-se Com Cagnazzo, a decúria comandando Barbariccia! E não podem separar-se “Droghinaz, Libicocco, deste bando! Graffiacane, o dentudo Ciriatto, Farfarel, Rubicante vão marchando! “Na ronda cada qual se mostre exato! Sejam a salvo os dois encaminhados Da ponte ao arco até agora intato!” “Que vejo, ó Mestre!” — eu disse — “Acompanhados!” Se sabes ir só, vamos prontamente; De guias tais dispensam-se os cuidados. “Se tu és, como sóis, Mestre, prudente, Não vês que os dentes seus estão rangendo, Que nos encaram com furor crescente?” “Não temas” — disse o Mestre, respondendo — “Ranger os dentes deixa-os a seu gosto: É contra os que ardem lá no pez horrendo”. À sestra os dez então fizeram rosto; Nos dentes cada qual mostra primeiro, Por mofa a língua ao cabo já disposto; E ele trompa fazia do traseiro.
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