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| - À força da dor cedera, E nem estaria vivo, Se o menino Deus vendado, Extremoso, e compassivo, Com o nome de Marília Não me viesse animar. Deixo a cama ao romper d'alva; O meio-dia tem dado, E o cabelo ainda flutua Pelas costas desgrenhado. Não tenho valor, não tenho, Nem par de mim cuidar. Diz-me Cupido: E Marília Não estima este cabelo? Se o deixas perder de todo, Não se há de enfadar ao vê-lo? Suspiro, pego no pente, Vou logo o cabelo atar. Vem um tabuleiro entrando De vários manjares cheio; Põe-se na mesa a toalha, E eu pensativo passeio: De todo o comer esfria, Sem nele poder tocar.
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abstract
| - À força da dor cedera, E nem estaria vivo, Se o menino Deus vendado, Extremoso, e compassivo, Com o nome de Marília Não me viesse animar. Deixo a cama ao romper d'alva; O meio-dia tem dado, E o cabelo ainda flutua Pelas costas desgrenhado. Não tenho valor, não tenho, Nem par de mim cuidar. Diz-me Cupido: E Marília Não estima este cabelo? Se o deixas perder de todo, Não se há de enfadar ao vê-lo? Suspiro, pego no pente, Vou logo o cabelo atar. Vem um tabuleiro entrando De vários manjares cheio; Põe-se na mesa a toalha, E eu pensativo passeio: De todo o comer esfria, Sem nele poder tocar. Eu entendo que a matar-te, Diz amor, te tens proposto; Fazes bem: terá Marília Desgosto sobre desgosto. Qual enfermo c'o remédio, Me aflijo, mas vou jantar. Chegam as horas, Marília, Em que o Sol já se tem posto; Vem-me à memória que nelas Vi à janela teu rosto: Reclino na mão a face, E entro de novo a chorar. Diz-me Cupido: Já basta, Já basta, Dirceu, de pranto; Em obséquio de Marília Vai tecer teu doce canto. Pendem as fontes dos olhos, Mas em sempre vou cantar. Vem o Forçado acender-me A velha, suja candeia; Fica, Marília, a masmorra Inda mais triste, e mais feia. Nem mais canto, nem mais posso Uma só palavra dar. Diz-me Cupido: São horas De escrever-se o que está feito. Do azeite, e da fumaça Uma nova tinta ajeito; Tomo o pau, que pena finge, Vou as Liras copiar. Sem que chegue o leve sono, Canta o Galo a vez terceira; Eu digo a Amor, que fico Sem deitar-me a noite inteira; Faço mimos, e promessas Para ele me acompanhar. Ele diz, que em dormir cuide, Que hei de ver Marília em sonho, Não respondo uma palavra, A dura cama componho, Apago a triste candeia, E vou-me logo deitar. Como pode a tais cuidados Resistir, ó minha Bela, Quem não tem de Amor a graça; Se eu, que vivo à sombra dela, Inda vivo desta sorte, Sempre triste a suspirar?
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