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  • Sôbolos rios que vão
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  • Sôbolos rios que vão por Babilónia, me achei, Onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei. Ali, o rio corrente de meus olhos foi manado, e, tudo bem comparado, Babilónia ao mal presente, Sião ao tempo passado. 2 Ali, lembranças contentes n'alma se representaram, e minhas cousas ausentes se fizeram tão presentes como se nunca passaram. Ali, depois de acordado, co rosto banhado em água, deste sonho imaginado, vi que todo o bem passado não é gosto, mas é mágoa. 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37
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  • Redondilhas de Babel e Sião
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notas
  • Poema conhecido tanto como por Sôbolos rios que vão , Redondilhas de Babel e Sião e Super flumina
Autor
  • Luís Vaz de Camões
abstract
  • Sôbolos rios que vão por Babilónia, me achei, Onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei. Ali, o rio corrente de meus olhos foi manado, e, tudo bem comparado, Babilónia ao mal presente, Sião ao tempo passado. 2 Ali, lembranças contentes n'alma se representaram, e minhas cousas ausentes se fizeram tão presentes como se nunca passaram. Ali, depois de acordado, co rosto banhado em água, deste sonho imaginado, vi que todo o bem passado não é gosto, mas é mágoa. 3 E vi que todos os danos se causavam das mudanças e as mudanças dos anos; onde vi quantos enganos faz o tempo às esperanças. Ali vi o maior bem quão pouco espaço que dura, o mal quão depressa vem, e quão triste estado tem quem se fia da ventura. 4 Vi aquilo que mais val, que então se entende milhor quanto mais perdido for; vi o bem suceder o mal, e o mal, muito pior, E vi com muito trabalho comprar arrependimento; vi nenhum contentamento, e vejo-me a mim, que espalho tristes palavras ao vento. 5 Bem são rios estas águas, com que banho este papel; bem parece ser cruel variedade de mágoas e confusão de Babel. Como homem que, por exemplo dos transes em que se achou, despois que a guerra deixou, pelas paredes do templo suas armas pendurou: 6 Assi, despois que assentei que tudo o tempo gastava, da tristeza que tomei nos salgueiros pendurei os órgãos com que cantava. Aquele instrumento ledo deixei da vida passada, dizendo: -- Música amada, deixo-vos neste arvoredo à memória consagrada. 7 Frauta minha que, tangendo, os montes fazíeis vir para onde estáveis, correndo, e as águas, que iam decendo, tornavam logo a subir: jamais vos não ouvirão os tigres que se amansavam, e as ovelhas, que pastavam, das ervas se fartarão que por vos ouvir deixavam. 8 Já não fareis docemente em rosas tornar abrolhos na ribeira florecente; nem poreis freio à corrente, e mais, se for dos meus olhos. Não movereis a espessura, nem podereis já trazer atrás vós a fonte pura, pois não pudeste mover desconcertos da ventura. 9 Ficareis oferecida à Fama, que sempre vela, frauta de mim tão querida; porque, mudando-se a vida, se mudam os gostos dela. Acha a tenra mocidade prazeres acomodados, e logo a maior idade já sente por pouquidade aqueles gostos passados. 10 Um gosto que hoje se alcança, amanhã já o não vejo; assi nos traz a mudança de esperança em esperança, e de desejo em desejo. Mas em vida tão escassa que esperança será forte? Fraqueza da humana sorte, que, quanto da vida passa, está receitando a morte? 11 Mas deixar nesta espessura o canto da mocidade, não cuide a gente futura que será obra da idade o que é força da ventura. Que idade, tempo, o espanto de ver quão ligeiro passe, nunca em mim puderam tanto que, posto que deixe o canto, a causa dele deixasse. 12 Mas, em tristezas e nojos, em gosto e contentamento, por sol, por neve, por vento, tendré presente á los ojos por quien muero tan contento. Órgãos e frauta deixava, despojo meu tão querido, no salgueiro que ali estava que para troféu ficava de quem me tinha vencido. 13 Mas lembranças da afeição que ali cativo me tinha, me perguntaram então: que era da música minha que eu cantava em Sião? Que foi daquele cantar das gentes tão celebrado? Porque o deixava de usar? Pois sempre ajuda a passar qualquer trabalho passado. 14 Canta o caminhante ledo no caminho trabalhoso, por entre o espesso arvoredo; e, de noite, o temeroso, cantando, refreia o medo. Canta o preso docemente os duros grilhões tocando; canta o sagador contente; e o trabalhor, cantando, o trabalho menos sente. 15 Eu, que estas cousas senti n'alma, de mágoas tão cheia, - Como dirá, respondi, quem alheio está de si doce canto em terra alheia? Como poderá cantar quem em choro banha o peito? Porque, se quem trabalhar canta por menos cansar, eu, só, descansos enjeito. 16 Que não parece razão nem seria cousa idónea, por abrandar a paixão, que cantasse em Babilónia as cantigas de Sião. Que, quando a muita graveza de saudade quebrante esta vital fortaleza, antes moura de tristeza que, por abrandá-la, cante. 17 Que se o fino pensamento só na tristeza consiste, não tenho medo ao tormento: que morrer de puro triste, que maior contentamento? Nem na frauta cantarei o que passo, e passei já, nem menos o escreverei, porque a pena cansará, e eu não descansarei. 18 Que, se a vida tão pequena se acrescenta em terra estranha, e se amor assi o ordena, razão é que canse a pena de escrever pena tamanha. Porém se, para assentar o que sente o coração, a pena já me cansar, não canse para voar a memória em Sião. 19 Terra bem-aventurada, se, por algum movimento, d'alma me fores mudada, minha pena seja dada a perpétuo esquecimento. A pena deste desterro, que eu mais desejo esculpida em pedra, ou em duro ferro, essa nunca seja ouvida, em castigo de meu erro. 20 E se eu cantar quiser, em Babilónia sujeito, Hierusalém, sem te ver, a voz, quando a mover, se me congele no peito. A minha língua se apegue às fauces, pois te perdi, se, enquanto viver assi, houver tempo em que te negue ou que me esqueça de ti. 21 Mas ó tu, terra de Glória, se eu nunca vi tua essência, como me lembras na ausência? Não me lembras na memória, senão na reminiscência. Que a alma é tábua rasa, que, com a escrita doutrina celeste, tanto imagina, que voa da própria casa e sobe à pátria divina. 22 Não é, logo, a saudade das terras onde nasceu a carne, mas é do Céu, daquela santa Cidade, donde esta alma descendeu. E aquela humana figura, que cá me pode alterar, não é quem se há-de buscar: é raio da Fermosura, que só se deve de amar. 23 Que os olhos e a luz que ateia o fogo que cá sujeita, não do sol, mas da candeia, é sombra daquela Ideia que em Deus está mais perfeita. E os que cá me cativaram são poderosos afeitos que os corações têm sujeitos; sofistas que me ensinaram maus caminhos por direitos. 24 Destes o mando tirano me obriga, com desatino, a cantar ao som do dano cantares de amor profano por versos de amor divino. Mas eu, lustrado co santo Raio, na terra de dor, de confusão e de espanto, como hei-de cantar o canto que só se deve ao Senhor? 25 Tanto pode o benefício da Graça, que dá saúde, que ordena que a vida mude; e o que tomei por vício me faz grau para a virtude; e faz que este natural amor, que tanto se preza, suba da sombra ao Real, da particular beleza para a Beleza geral. 26 Fique logo pendurada a frauta com que tangi, ó Hierusalém sagrada, e tome a lira dourada, para só cantar de ti. Não cativo e ferrolhado na Babilónia infernal, mas dos vícios desatado, e cá desta a ti levado, Pátria minha natural. 27 E se eu mais der a cerviz a mundanos acidentes, duros, tiranos e urgentes, risque-se quanto já fiz do grão livro dos viventes. E tomando já na mão a lira santa e capaz doutra mais alta invenção, cale-se esta confusão, cante-se a visão da paz. 28 Ouça-me o pastor e o Rei, retumbe este acento santo, mova-se no mundo espanto, que do que já mal cantei a palinódia já canto. A vós só me quero ir, Senhor e grão Capitão da alta torre de Sião, à qual não posso subir, se me vós não dais a mão. 29 No grão dia singular que na lira o douto som Hierusalém celebrar, lembrai-vos de castigar os ruins filhos de Edom. Aqueles que tintos vão no pobre sangue inocente, soberbos co poder vão, arrasai-os igualmente, conheçam que humanos são. 30 E aquele poder tão duro dos afeitos com que venho, que encendem alma e engenho, que já me entraram o muro do livre alvídrio que tenho; estes, que tão furiosos gritando vêm a escalar-me, maus espíritos danosos, que querem, como forçosos, do alicerce derrubar-me; 31 Derrubai-os, fiquem sós, de forças fracos, imbeles, porque não podemos nós nem com eles ir a Vós nem sem Vós tirar-nos deles. Não basta minha fraqueza para me dar defensão, se vós, santo Capitão, nesta minha fortaleza não puserdes guarnição. 32 E tu, ó carne que encantas, filha de Babel tão feia, toda de misérias cheia, que mil vezes te levantas, contra quem te senhoreia: beato só pode ser quem, co a ajuda celeste, contra ti prevalecer, e te vier a fazer o mal que lhe tu fizeste. 33 Quem, com disciplina crua, se fere que ua vez, cuja alma, de vícios nua, faz nódoas na carne sua, que já a carne n'alma fez. E beato quem tomar seus pensamentos recentes e em nacendo os afogar, por não virem a parar em vícios graves e urgentes. 34 Quem com eles logo der na pedra do furor santo, e, batendo, os desfizer na Pedra, que veio a ser enfim cabeça do Canto; quem logo, quando imagina nos vícios da carne má, os pensamentos declina àquela Carne divina que na Cruz esteve já; 35 Quem do vil contentamento cá deste mundo visível, quanto ao homem for possível, passar logo o entendimento para o mundo inteligível: ali achará alegria em tudo perfeita e cheia de tão suave harmonia, que, nem por pouca, recreia, nem, por sobeja, enfastia. 36 Ali verá tão profundo mistério na suma Alteza, que, vencida a natureza, os mores faustos do mundo julgue por maior baixeza. Ó tu, divino aposento, minha pátria singular! Se só com te imaginar tanto sobe o entendimento, que fará se em ti se achar? 37 Ditoso quem se partir para ti, terra excelente, tão justo e tão penitente que, depois de a ti subir lá descanse eternamente.
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