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  • A Divina Comédia/Purgatório/XIX
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  • Quando ao geomante fúlgida aparece A Fortuna Maior lá no Oriente, Donde rápida a noite se esvaece, Sonhando vi mulher balbuciente, Que vesga era nos olhos, nos pés torta, De mãos truncadas e de tez palente. Eu a encarava; e como o sol conforta Os membros a que a noite o frio agrava, Ao meu olhar assim a quase morta Língua movia; o corpo já se alçava, E no terreno e lívido semblante A cor, que amor estima, se mostrava. Soltando a voz, há pouco titubante, Doce canto entoava tão donosa, Que me absorvia o enlevo inebriante. Somente esta no mundo ora me resta.” —
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  • Purgatório, Canto XIX
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  • por Dante Alighieri, tradução de José Pedro Xavier Pinheiro
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  • Quando ao geomante fúlgida aparece A Fortuna Maior lá no Oriente, Donde rápida a noite se esvaece, Sonhando vi mulher balbuciente, Que vesga era nos olhos, nos pés torta, De mãos truncadas e de tez palente. Eu a encarava; e como o sol conforta Os membros a que a noite o frio agrava, Ao meu olhar assim a quase morta Língua movia; o corpo já se alçava, E no terreno e lívido semblante A cor, que amor estima, se mostrava. Soltando a voz, há pouco titubante, Doce canto entoava tão donosa, Que me absorvia o enlevo inebriante. — “Sereia sou” — cantava — “deleitosa, Que da rota desvia os mareantes, Tanto prazer lhes movo poderosa. “Detiveram meus cantos fascinantes Ulisses vago; e raros me deixaram, A todos prende o som dos meus descantes.” — Junto a mim, mal seus lábios se fecharam, Eis se mostrava dama santa e presta: A sereia os seus olhos conturbaram. — “Dize, ó Virgílio: que mulher é esta?” — Bradava irosa; e o Vate lhe acorria. Respeitoso ante aquela face honesta. Dela a dama travava e prosseguia, Seus véus rasgava, o ventre desnudando: Desperto ao cheiro infando que saía. Olhos abri. Virgílio, me falando: — “Três vezes te chamei” — disse — “eia! asinha Vamos, o passo onde entres, procurando.” — Ergui-me logo. Alumiados tinha O dia os círculos todos do alto monte; Pelas costas surgindo o sol nos vinha. Após o Mestre se me inclina a fronte, Como a quem, de cuidados oprimido, Curva a cerviz, semelha arco de ponte, — “Aqui se passa: vinde!” — proferido Foi por voz tão suave, tão beni?na, Que não fora igual som na terra ouvido. Da rocha entre os dois muros nos desi?na Quem falara, o caminho, asas abrindo, Que tem do cisne a alvura purpurina. Depois as níveas plumas sacudindo, — “Os que choram” — bradou — “são venturosos De consolo a esperança possuindo!” — — “Por que os olhos no chão fitas cuidosos?” — O Mestre perguntou, depois que alçou-se Voando o anjo aos ares luminosos. — “Em recente visão, Senhor, mostrou-se Imagem” — respondi — “que tanto instiga Que inda a sua impressão não mitigou-se.” — — “A mágica” — me disse — “viste antiga, Que lá mais alto tanta dor motiva? Como o homem viste dela se desliga? “Não mais! Avante segue, o alento aviva! Olhos volve ao reclamo, com que gira Do Rei Eterno cada esfera altiva.” — Como faz o falcão, que os pés remira, Depois ao grito acode e, acelerado, Contra a ralé, que avista, ao ar se atira: Assim eu; e por onde era cortado, Para trânsito dar ao monte erguido, Corri té outro círculo, apressado. Tendo ao círculo quinto já subido, Jazer vi turba inúmera em lamento: Para baixo era o rosto seu volvido. “Adhaesit anima mea pavimento” — Com tanta dor diziam suspirando, Que da voz mal caí no entendimento. — “Dizei, de Deus eleitos, que, penando, Colheis alívio na justiça e esp?rança, Por onde ao cimo iremos caminhando.” — — “Se a nossa punição não vos alcança E mais pronta quereis ter a subida, À direita e por fora que se avança.” — Do meu Guia a pergunta respondida Foi por uma alma, que adiante estava: Ser outra idéia eu cri nisso escondida. Então, olhos voltando, interrogava Virgílio, que aprovou com ledo gesto O desejo, que o rosto denotava. Da permissão do Mestre usando presto, Daquele ente acerquei-me doloroso, Que se fez por palavras manifesto. — “Tu, que, expiando as culpas lacrimoso, Apressas de te erguer à glória o dia, Por mim pára em teu pranto fervoroso. “Quem foste? Por que assim jazeis?” — dizia “No mundo, donde venho vivo, impetre Por teu bem querer cousa da valia?” — — “Convém que o teu espírito penetre Desta pena a razão; porém primeiro Scias quod ego fui sucessor Petri. “Do meu solar o título altaneiro Origem teve nesse rio belo, Que entre Chiaveri e Siestre flui ligeiro “Em pouco mais de um mês vi que desvelo Custa guardar o grande manto puro: Todo outro fardo é pluma em paralelo. “Quanto — ai de mim! — de converter fui duro! Mas, apenas Pastor em Roma eleito, Eu soube quanto mente o mundo impuro. “Não gozou paz, nem quietação meu peito; Mais alto já subir se não pudera: Então da vida eterna ardi no afeito. “Minha alma, triste e mísera, perdera De Deus o amor em sórdida avareza: Esta pena, que vês, bem merecera “De tal pecado mostra-se a graveza Aqui pelo castigo, em que se expia: No monte outro não há de mor asp?reza. “Como ao céu nossa vista não se erguia, Nas cousas terreais embevecida, Assim justiça à terra a prende e lia. “Como a avareza em nós tinha extinguida A propensão ao bem, aos santos feitos, Assim nos tem justiça a ação tolhida. “Pés e mãos ata em vínculos estreitos: Enquanto a Deus prouver, nós, estendidos, Imóveis estaremos nesses leitos.” — De joelhos e de olhos abatidos Quis falar-lhe; mas ele, conhecendo Esse meu ato só pelos ouvidos, — “Por que te curvas?” — me atalhou dizendo. — “Em reverência à vossa dignidade: Cumpro um dever dessa arte procedendo.” — — “Ergue-te, irmão! Não erres! Em verdade, Eu como tu, e o universo inteiro A lei seguimos de uma só vontade. “Do Evangelho o sentido verdadeiro Que disse — neque nubente — se entendeste, Verás o meu pensar quanto é certeiro. “Vai-te agora, demais te detiveste. Saudável pranto empece a tua estada: Perdão apressam lágrimas, disseste. “Sobrinha tenho, Alagia foi chamada: É boa, se da raça tão funesta Não pervertê-la a tradição danada. Somente esta no mundo ora me resta.” —
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