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| - E a vez terceira os galos já cantavam, Quando, prezado amigo, punha o selo Na volumosa carta, em que te conto Do nosso imortal chefe a grande entrada; E refletindo, então, ser quase dia, A despir-me começo, com tal ânsia, Que entendo que inda estava o lacre quente Quando eu já, sobre os membros fatigados, Cuidadoso, estendia a grosa manta. Não cuides, Doroteu, que brandas penas Me formam o colchão macio e fofo; Não cuides que é de paina a minha fronha E que tenho lençóis de fina holanda, Com largas rendas sobre os crespos folhos. Custosos pavilhões, dourados leitos E colchas matizadas, não se encontram Na casa mal provida de um poeta, Aonde, há dias que o rapaz que serve Nem na suja cozinha acende o fogo. Mas, nesta mesma cama, tosca e dura, Descanso mais contente, do que dorme Aquele, que só põe o seu cuidado Em deixar a seus filhos o tesouro Que ajunta, Doroteu, com meio avara, Furtando ao rico e não pagando ao pobre. Aqui... mas onde vou, prezado amigo? Deixemos episódios, que não servem E vamos prosseguindo a nossa história. Fui deitar-me ligeiro, como disse, E mal estendo nos lençóis o corpo, Dou um sopro na vela, os olhos fecho E pelos dedos rezo a muitos santos, Por ver se chega mais depressa o sono, Conselho que me deram sábias velhas já, meu bom Doroteu, o sono vinha: Umas vezes dormindo, ressonava, Outras vezes, rezando, inda bulia Com os devotos beiços, quando sinto Passar um carro, que me abala o leito. Assustado desperto, os olhos abro E, conhecendo a causa que me acorda, Um tanto impaciente o corpo viro, Fecho os olhos de novo e cruzo os braços Para ver se outra vez me torna o sono Segunda vez o sono já tornava Quando o estrondo percebo de outro carro; Outra vez, Doroteu, o corpo volto, Outra vez me agasalho, mas que importa? Já soam dos soldados grossos berros, Já tinem as cadeias dos forçados, Já chiam os guindastes, já me atroam Os golpes dos machados e martelos E, ao pé de tanta bulha, já não posso Mais esperança ter de algum sossego. Salto fora da cama, acendo a vela, À banca vou sentar-me exasperado, E, por ver se entretenho as longas horas, Aparo a minha pena, o papel dobro E com mão, que ainda treme de cansada, Não sei, prezado amigo, o que te escrevo. Só sei que o que te escrevo são verdades E que vêem muito bem ao nosso caso. Apenas, Doroteu, o nosso chefe As rédeas manejou, do seu governo, Fingir-nos intentou que tinha uma alma Amante da virtude. Assim foi Nero. Governou aos romanos pelas regras Da formosa justiça, porém logo Trocou o cetro de ouro em mão de ferro. Manda, pois, aos ministros lhe dêem listas De quantos presos as cadeias guardam, Faz a muitos soltar e aos mais alenta De vivas, bem fundadas esperanças. Estranha ao subalterno, que se arroga O poder castigar ao delinqüente Com troncos e galés; enfim ordena Que aos presos, que em três dias não tiverem Assentos declarados, se abram logo Em nome dele, chefe, os seus assentos. Aquele, Doroteu, que não é santo, Mas quer fingir-se santo aos outros homens Pratica muito mais, do que pratica Quem segue os sãos caminhos da verdade. Mal se põe nas igrejas, de joelhos, Abre os braços em cruz, a terra beija, Entorta o seu pescoço, fecha os olhos, Faz que chora, suspira, fere o peito, E executa outras muitas macaquices Estando em parte onde o mundo as veja. Assim o nosso chefe, que procura Mostrar-se compassivo, não descansa Com estas poucas obras: passa a dar-nos Da sua compaixão maiores provas. Tu sabes, Doroteu, qual seja o crime Dos soldados, que furtam aos soldados, E sabes muito bem que pena incorram Aqueles que viciam ouro e prata. Agora, Doroteu, atende o como Castiga o nosso chefe em um sujeito Estes graves delitos, que reputa Ainda menos do que leves faltas. Apanha um militar aos camaradas Do solo uma porção. Astuto e destro, Para não se sentir o grave furto, Mistura nos embrulhos, que lhes deixa, Igual quantia de metal diverso. Faz-se queixa ao bom chefe deste insulto, Sim, faz-se ao chefe queixa, mas debalde, Que este Hércules não cinge a grossa pele, Nem traz na mão robusta a forte clava, Para guerra fazer aos torpes Cacos. Já leste, Doroteu, a D. Quixote? Pois eis aqui, amigo, o seu retrato; Mas diverso nos fins, que o doido Mancha Forceja por vencer os maus gigantes Que ao mundo são molestos e este chefe Forceja por suster, no seu distrito, Aqueles que se mostram mais velhacos. Não pune, doce amigo, como deve, Das sacrossantas leis a grave ofensa; Antes, benigno, manda ao bom Matúsio Que do seu ouro próprio se ressarça Aos aflitos roubados toda a perda. Já viste, Doroteu, igual desordem? O dinheiro de um chefe, que a lei guarda, Acode aos tristes órfãos e às viúvas; Acode aos miseráveis, que padecem Em duras, rotas camas e socorre, Para que honradas sejam, as donzelas, Porém não paga furtos, porque fiquem Impunes os culpados, que se devem, Para exemplo, punir com mão severa. Envia, Doroteu, vizinho chefe Ao nosso grande chefe outro soldado Por vários crimes convencido e preso. Lança-se o tal soldado, de joelhos Aos pés do seu herói, suspira e treme, Não nega que ferira e que matara, Mas pede que lhe valha a mão piedosa Que tudo pode, que ele aperta e beija. Pergunta-lhe o bom chefe se os seus crimes Divulgados estão e o camarada, Com semblante já leve, lhe responde Que suas graves culpas foram feitas Em sítios mui distantes desta praça. Então, então o chefe, compassivo Manda tirar os ferros dos seus braços a-lhe um salvo-conduto, com que possa, Contanto que na terra não se saiba, fazer impunemente insultos novos. Caminha, Doroteu, à força um negro Conforme as leis do reino bem julgado. Tu sabes, Doroteu, que o próprio Augusto Estas fatais sentenças não revoga Sem um justo motivo, em que se firme o seu perdão a causa. Também sabes Que estas mesmas mercês se não concedem Senão por um decreto, em que se expende Que o sábio rei usou, por motu-próprio, Do mais alto poder que tem o cetro. Agora, Doroteu, atende e pasma: Por um simples despacho, manda o chefe Que o triste padecente se recolha. Assenta: vale tanto, lá na corte, Um grande – El-Rei – impresso, quanto vale Em Chile, um – Como pede – e o seu garrancho. Aonde, louco chefe, aonde corres Sem tino e sem conselho? Quem te inspira Que remitir as penas é virtude? E, ainda a ser virtude, quem te disse Que não é das virtudes, que só pode, Benigna, exercitar a mão augusta? Os chefes, bem que chefes, são vassalos E os vassalos não têm poder supremo. O mesmo grande Jove, que modera O mar, a terra e o céu, não pode tudo, Que ao justo só, se estende o seu império. O povo, Doroteu, é como as moscas Que correm ao lugar, aonde sentem O derramado mel, é semelhante Aos corvos e aos abutres, que se ajuntam Nos ermos, onde fede a carne podre. À vista, pois, dos fatos, que executa O nosso grande chefe, decisivos Da piedade que finge, a louca gente De toda a parte corre a ver se encontra Algum pequeno alivio à sombra dele. Não viste, Doroteu, quando arrebenta Ao pé de alguma ermida a fonte santa, Que a fama logo corre e todo o povo Concebe que ela cura as graves queixas. Pois desta sorte entende o néscio vulgo Que o nosso general lugar-tenente, Em todos os delitos e demandas, Pode de absolvição lavrar sentenças. Não há livre, não há, não há cativo Que ao nosso Santiago não concorra. Todos buscam ao chefe e todos querem, Para serem bem vistos, revestir-se Do triste privilégio de mendigos. Um as botas descalça, tira as meias E põe no duro chão os pés mimosos; Outro despe a casaca, mais a veste E de vários molambos mal se cobre; Este deixa crescer a ruça barba, Com palhas de alhos se defuma aquele; Qual as pernas emplastra e move o corpo Metendo nos sobacos as muletas; Qual ao torto pescoço dependura, Despido, o braço que só cobre o lenço; Uns, com bordão, apalpam o caminho, Outros, um grande bando lhe apresentam De sujas moças, a quem chamam filhas. Já foste, Doroteu, a um convento De padres franciscanos, quando chegam As horas de jantar? Passaste, acaso Por sítio em que morreu mineiro rico, Quando da casa sai pomposo enterro? Pois eis aqui, amigo, bem pintada A porta, mais a rua deste chefe Nos dias de audiência. Oh! quem pudera Nestes dias meter-se um breve instante, A ver o que ali vai na grande sala! Escusavas de ler os entremezes Em que os sábios poetas introduzem, Por interlocutores, chefes asnos. Um pede, Doroteu, que lhe dispense Casar com uma irmã da sua amásia; Pede outro que lhe queime o mau processo, Onde esta criminoso, por ter feito Cumprir exatamente um seu despacho; Diz este que os herdeiros não lhe entregam Os bens, que lhe deixou, em testamento, Um filho de Noé; aquele ralha Contra os mortos,juízes, que lhe deram, Por empenhos e peitas, a sentença Em que toda a fazenda lhe tiraram; Um quer que o devedor lhe pague logo; Outro, para pagar, pertende espera; Todos, enfim, concluem que não podem Demandas conservar; por serem pobres E grandes as despesas, que se fazem Nas casas dos letrados e cartórios. Então o grande chefe, sem demora, Decide os casos todos que lhe ocorrem Ou sejam de moral, ou de direito, Ou pertençam, também, à medicina, Sem botar, (que ainda é mais), abaixo um livro Da sua sempre virgem livraria. Lá vai uma sentença revogada Que já pudera ter cabelos brancos; Lá se manda que entreguem os ausentes Os bens ao sucessor, que não lhes mostra Sentença que lhe julgue a grossa herança. A muitos, de palavra, se decreta Que em pedir os seus bens, não mais prossigam; A outros se concedem breves horas Para pagarem somas que não devem. Ah! tu, meu Senhor Pança, tu que foste Da Baratária o chefe, não lavraste Nem uma-só sentença tão discreta! E que queres, amigo, que suceda? Esperavas, acaso, um bom governo Do nosso Fanfarrão? Tu não o viste Em trajes de casquilho, nessa corte? E pode, meu amigo, de um peralta Formar-se, de repente, um homem sério? Carece, Doroteu, qualquer ministro Apertados estudos, mil exames, E pode ser o chefe onipotente Quem não sabe escrever uma só regra Onde, ao menos, se encontre um nome certo? Ungiu-se, para rei do povo eleito, A Saul, o mais santo que Deus via. Prevaricou Saul, prevaricaram, No governo dos povos, outros justos. E há-de bem governar remotas terras Aquele que não deu, em toda vida Um exemplo de amor à sã virtude? As letras, a justiça, a temperança Não são, não são morgados que fizesse A sábia natureza, para andarem. Por sucessão nos filhos dos fidalgos. Do cavalo andaluz, é, sim, provável Nascer, também, um potro de esperança, Que tenha frente aberta, largos peitos, Que tenha alegres olhos e compridos, Que seja, enfim, de mãos e pés calçado; Porém de um bom ginete também pode Um catralvo nascer, nascer um zarco. Aquele mesmo potro, que tem todos Os formosos sinais, que aponta o Rego, Carece, Doroteu, correr em roda No grande picadeiro muitos meses, Para um e outro lado, necessita Que o destro picador lhe ponha a sela E que, montando nele, pouco a pouco, O faça obedecer ao leve toque Do duro cabeção, da branda rédea. Dos mesmos, Doroteu... porém já toca. Ao almoço a garrida da cadeia Vou ver se dormir posso, enquanto duram Estes breves instantes de sossego, Que, sem barriga farta e sem descanso, Não se pode escrever tão longa história.
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