About: dbkwik:resource/LefpmLfwPvsDUhYOz3iofw==   Sponge Permalink

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  • Visões (Gonçalves Dias)
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  • Naquele instante em que vacila a mente Do sono ao despertar, quando pejada Vem doutros mundos de visões etéreas; Quando sobre a manhã surge brilhante A luz da madrugada, - eu vi!... nem sonhos Era a minha visão, real não era; Mas tinha d'ambos o talvez. - Quem sabe? Foi capricho falaz da fantasia, Ou foi certo aventar d'eras venturas? Junto à cruz - da fachada egrégia pompa - Muitos homens eu vi de torvo aspecto; Muitos outros, servis, com mão armada Profundos golpes entalhavam nela. Um daqueles no entanto assim falava: Dans sa doiileur elle se trouvail malheurese d'être immortelle. -- Fénélon
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  • Visões
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notas
  • Publicado no livro Primeiros Cantos .
Autor
  • Gonçalves Dias
abstract
  • Naquele instante em que vacila a mente Do sono ao despertar, quando pejada Vem doutros mundos de visões etéreas; Quando sobre a manhã surge brilhante A luz da madrugada, - eu vi!... nem sonhos Era a minha visão, real não era; Mas tinha d'ambos o talvez. - Quem sabe? Foi capricho falaz da fantasia, Ou foi certo aventar d'eras venturas? A ira do Senhor baixou tremenda Sobre uma vasta capital! - em pedra Tornou-se a gente impura. Muitos homens Às portas férreas, largas, vi sentados. Melhor do que um pintor ou estatuário A morte, que de súbito os colhera No ardor, no afã da vida, conservou-lhes A ação - partida em meio, com tal força, Que a mente seu malgrado a completava. Um tinha os lábios entreabertos; outro Parecia sorrir; mais longe aquele Derramava um segredo, baixo, a medo, Nos ouvidos do amigo; austero o guarda Com rosto carregado e barba hirsuta, Nas mãos calosas sopesava a lança. Dos mercadores na comprida rua Passavam muitos compradores; - este Contava montes d'oiro; - à luz aquele Expunha a seda do Indostão, de Tiro A púrpura brilhante, a damasquina Custosa tela entretecida d'oiro. Cortês sorrindo, o mercador gabava As cores vivas, o tecido, o corpo Do estofo que vendia. Nos serralhos Era o Eunuco imperfeito; das Mesquitas Bradava à prece o Muezim... - Num largo, Fofo e vasto divã sentado, um velho Os versos lia do Alcorão; - só ele Dentre tanto punir ficara ileso. Era um templo d'arábica estrutura, Majestoso, elegante; - além das nuvens Se entranhava nos céus subtil a agulha; Sobre o zimbório retumbante e vasto Ondas e ondas de vapor cresciam. Dentro corriam três compridas naves Sobre dois renques de colunas, onde Baixos-relevos da sagrada história Da base ao capitel se emaranhavam. Ardia a luz na alâmpada sagrada; No sagrado instrumento o som dormia. Junto à cruz - da fachada egrégia pompa - Muitos homens eu vi de torvo aspecto; Muitos outros, servis, com mão armada Profundos golpes entalhavam nela. Um daqueles no entanto assim falava: "Quando esta humilde cruz rojar por terra, "Levando a crença de Jesus consigo, "Nós outros, da verdade Sacerdotes, "Nós Doutores do mundo, nós Luzeiros "Que desvendamos a impostura, o erro, "A mentira sagaz, a crença louca, "Entrada fácil da razão no templo "Teremos todos, e de então no trono, "Do néscio vulgo imparciais sob'ranos, "Santos juízes da verdade santa, "Pregaremos o justo, a paz, concórdia "E os seus deveres que dimanam fáceis "Do amor do lucro e do interesse; todos "- Vassalos da razão, nossos vassalos - "Um éden terreal farão do mundo." No entanto aos crebros golpes do machado A cruz pendia oblíqua sobre a terra. Criando novas forças com tal vista, Os operários mais freqüentes golpes Repetem, vibram, continuam; - soa Por toda a parte o eco, - o som, mais longe, Retumba, morre - e novamente ecoa. Nisto a cruz - geme - estrala; um grito sobe Uníssono e geral!. . . Como sois grande, Senhor, Senhor meu Deus? - Eu vi, morrendo, Os obreiros cair; e a cruz erguer-se, Como aos raios do sol a flor mimosa Que a raiva do tufão vergara insana. Era um quarto espaçoso; - ali se viam Rojar no pavimento, há pouco, as sedas, Ricos tapetes multicor bordados, E franjas complicadas dum céu d'oiro Pendentes, - vastos rases narradores De lenda pia ou de briosos feitos. Mas de tanto luzir, de tanto ornato Ora por mãos avaras depredado O vasto d'área revelava aos olhos, Tendo num canto escuro um leito apenas. Do leito alguém rasgara o cortinado. E da curva armação polida e bela Aqui, ali, pendia a seda em fios, Bem como tranças de mulher formosa Por sobre o seio nu. - Ali no leito Jazia um moribundo; em torno os olhos Cheios de pasmo e de terror volvia, Bebendo pelos sôfregos ouvidos Mal sentido rumor doutro aposento. Confusas vozes, altercar ruidoso, E o tinir de metal ouvia apenas! Então por vezes três no leito aflito Erguer-se maquinou de raiva insano! Por três vezes caiu, gemendo, sobre O leito que da queda se sentia. Da morte o cru torpor nos membros frios Pouco e pouco s'espalha; mas teimoso Da vida o amor debate-se nas ânsias Desse passo fatal. . . - Eis nisto à porta Um Padre assoma, - dentre as mãos erguidas Da hóstia santa resplendor luzia; E palavras de paz, de amor, divinas, Que nos lábios do justo Deus entorna, Abundantes soltava. Longos anos De piedoso sofrer o corpo enfermo Alquebraram por fim: as cãs nevadas Raras tremiam sobre a testa, como Tremia na garganta a voz cansada. Dizia o bom do velho: - "Irmão, nas ânsias, "No extremo agonizar da morte amiga "Ergue os olhos ao céu; - do céu te venha "Esse divino amor, que só lá morri, "Que filtra por nossa alma, que nos deixa "Mais celeste prazer, mais doce arroubo, "Do que a terra sói dar... "Infames, tredos, "Bufarinheiros de palavras, corvos "De negro, feio agoiro, que esvoaçam "Com grito grasnador por sobre o campo, "Onde a peleja de reinar começa; "Dizes-me tu - a mim! a mim que ao foro "Caminho inda hoje entre alas de clientes, "Que só me visto de veludo e d'oiro, "Enquanto vives de burel coberto, "Co'os lábios sobre o pó mordendo a terra! "Dizes-me tu a mim!..." Ergueu-se, o corpo Caiu de fraco sobre o leito; o velho No entanto humilde orava, que alma santa Do mal cabido insulto não se ofende. Jeová, que entre miríades Vives de estrelas formosas, Que das flores melindrosas Da terra - os anjos formaste; Jeová, que pela água Lustrar quiseste o Messias, Que ao beato, ao santo Elias Nas chamas purificaste; Jeová, que a mente apuras No fogo do sofrimento, Que divino alto portento Deste fazer à Moisés, Quando a negra rocha dura Tocando co'a tênue vara, Rebentou a linfa clara. Lambendo-lhe mansa os pés: Jeová, que eterno existes, Cujo ser em si se encerra, Que formaste o céu e a terra, Que te chamas - o que é, - Faz, Senhor d'altos prodígios, Com que a mente empedernida Não se aparte desta vida Sem sentir a santa fé. E tu, Cristo, que sofreste Martírios por nosso amor, Tu que foste o Salvador, Salva-o, Senhor, por quem és. Dá que em palavras piedosas Se derrame contristado, Como o rochedo tocado Pela vara de Moisés. E o confuso rumor do outro aposento Crescia mais e mais. - Do moribundo Os cúpidos herdeiros dividiam Por si a vasta herança; os torvos olhos Iam de rosto a rosto, fuzilando Ameaças de morte. No entanto o velho exânime e sem forças Curtia amargos transes, que avarento, E tendo a vida inútil presa a terra Com toda a força d'alma, - agora em ânsias Sentia o hálito vital fugir-lhe, E a terra abandoná-lo. Estua-lhe a dor no peito aflito!. . . Só não chorava, que do pranto a fonte Jazia extinta; mas pensava triste: - Não tinha alguém que lhe cerrasse os olhos Nem quem chorando lhe abrandasse o amargo Do extremo agonizar E a mente, já medrosa, em feio quadro lhe pintava os seus feitos: - A vingança, Que tão grande prazer lhe tinha sido, Ora em martírios se tornava; a chusma Dos homicídios seus crescia torva, E no leito o cercava. Crença infantil! dizia; loucos, cegos Prejuízos do vulgo; - assim dizendo Os vãos fantasmas repelir buscava. Mas a crença infantil, os prejuízos Do néscio vulgo, ríspidos tornavam, Como inseto importuno. Debalde por não ver cerrava os olhos. Sobre os olhos debalde as mãos cruzava, Que as sombras nos ouvidos lhe falavam, E mais distintas se pintavam n'alma - Tão bem molesta, qual se pinta o corpo Do espelho no polido. E do seu passamento o caso infando Narrava uma após outra, sobre o peito Mostrando o golpe fúnebre e cruento; Sorvendo o fel da taça amarga o enfermo Parecia sorrir!... era qual louco Que sofre e um riso finge. E das visões indo a fugir se arroja De sobre o leito delirante; as sombras Voam sobre ele, e em círculo se ordenam. O moribundo a esta, a aquela, a todas Volve o pávido rosto, no mover-se Progressivo, incessante. E preso ao duro embate da vertigem, As mestas sombras ao redor com ele Fugir sentia; o pavimento, a casa Rápido rodava; a terra e tudo, Como aos soluços dum vulcão tremendo, As forças lhe tolhiam. E o orgulhoso que feliz vivera, Movendo a seu bom grado mil escravos, Querendo a terra dominar co'um gesto, Ora mesquinho, solitário e louco, Face a face, lutando com seus crimes, Morria impenitente. Era o vulto de um homem morto que afastando o sudário se ia erguer do túmulo para revelar alguns dos temerosos mistérios, que encerra a aparente quietação dos sepulcros. -- O Presbítero O negrume da noite avulta; e cresce Mais feia a escuridão À luz da sacra pira que derrama Frouxo e tíbio clarão. Calou-se o canto, a prece, - é mudo o templo; Apenas fraco soa Da torre o bronze, que a noturna brisa De rumores povoa. Mas eis que de um sepulcro a pedra fria S'ergue e sobre outras cai. Não se escuta rumor! - da campa livre Medroso espectro sai. O rosto ossificado em tomo volve, Volve a suja caveira; Do liso crânio os longos dedos varrem A fúnebre poeira. Mas inda inteiro o coração se via Do peito nas cavernas, Inda sangrento lágrimas chorava Do negro sangue eternas. E caminhando, qual se move a sombra, Ao órgão se assentou! Já não dormem os sons, não dormem ecos... - O triste assim cantou: "Onde estás, meu amor, meus encantos, Por quem só me pesava morrer, Doce encanto que a vida me prendes, Que inda em morto me fazes sofrer? "Doce amor, minha vida no mundo, Desse mundo em que parte serás; Em que cismas, que pensas, que fazes, Onde estás, meu amor, onde estás? Ah! debalde na campa gelada, Fria morte me pôde deitar! Foi debalde, - que eu sinto, que eu ardo; Foi debalde, - que eu amo a penar. "Ah! se eu triste no mundo pudesse Como outrora viver, respirar. . . Não soubera dizer-te os ardores Que o sepulcro não pode apagar. "Onde estás? - Já da morte o bafejo Por teu rosto divino roçou; Já na campa descansas finada, Que o teu corpo sem vida tragou? "Mas a morte não pode impiedosa Crua foice vibrar contra til Ah! tu vives, que eu sinto, que eu sofro Crus ardores quais sempre sofri. "E eu não posso o teu nome à noitinha Entre as folhas saudoso cantar, Nem seguir-te nas asas da brisa, Nem teu sono de sonhos doirar. "Nem lembrar-te os queridos instantes Que a teu lado arroubado passei, Sem cuidados de incerto futuro, Só ruidoso da vida que amei. "Não te lembras da noite homicida Em que um ferro meu peito varou, Quando a fácil conversa de amores Teu marido cioso quebrou?! "Desde então hei penado sozinho, Verte sangue meu peito - de então; Pode a morte acabar-me a existência, Mas delir-me não pode a paixão! "Nosso adúltero afeto no mundo Não se acaba; - assim quis o Senhor! Não se acaba... - qu'importa? - hei gozado Teus encantos gentis, teu amor. "Por te amar outras fráguas sofrera, Outros transes e dor e penar; Oh! poder que eu podesse outra vida E outro inferno sofrer por te amar!" Mas da aurora já raiava Macio e brando clarão; Macia e branda a canção Do negro espectro soava. E medroso se colava Ao órgão seu negro véu, Que imiga não se ajuntava Ao seu vulto a luz do céu. Pouco a pouco se perdia O negro espectro; a canção Pouco a pouco enfraquecia: Do dia ao tênue clarão, Era o cantar um soído Fraco, incerto e duvidoso; Era o vulto pavoroso Duma sombra vão tremido. Dans sa doiileur elle se trouvail malheurese d'être immortelle. -- Fénélon Da aurora vinha nascendo O grato e belo clarão; Eu sonhava! já mais brandos Eram meus sonhos então. Condensou-se o ar num ponto, Cresceu o subtil vapor; Vi formada uma beleza, Cheia de encantos, de amor. Mas na candura do rosto Não se pintava o carmim; Tinha um quê de cera junto ' À nitidez do marfim. - "Quem és tu, visão celeste, ' Belo Arcanjo do Senhor?" Respondeu-me: - "Sou a Morte, Cru fantasma de terror?" - Ah lhe tornei: És a morte, Tão formosa e tão cruel! - Correndo o mundo sozinha No meu pálido corcel, - Assim dizia - "Tu julgas Que não tenho coração, Que executo os meus deveres Sem pesar, sem aflição? - Que inda em flor da vida arranco Ao jovem, sem compaixão, A donzela pudibunda Ou ao longevo ancião? - Oh! não, que eu sofro martírios Do que faço ao mais sofrer, Sofro dor de que outros morrem, De que eu não posso morrer; - Mas em parte a dor me cura Um pensamento, que é meu, - Lembro aos humanos que a terra É só passagem p'ra o céu. - Faço ao triste erguer os olhos Para a celeste mansão; Em lábios que nunca oraram Derramo pia oração. - É meu poder quem apura Os vícios que a mente encerra, Ao fogo da minha dor; Sou quem prendo aos céus a terra, Sou quem ligo a criatura Ao ser do seu Criador. - Mas qu'importa? Sem descanso É-me forçoso marchar, Abater ímpias frontes, Régias frontes decepar. - Passar ao través dos homens, Como um vento abrasador; Como entre o feno maduro A foice do segador. - E prostrar uma após outra Geração e geração, Como peste que só reina Em meio da solidão." - Desponta o sol radioso Entre nuvens de carmim: Cessa o canto pesaroso, Como corda áurea de Lira, Que se parte, que suspira Dando um gemido sem fim.
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