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| - Amigo Doroteu, prezado amigo, Abre os olhos, boceja, estende os braços E limpa, das pestanas carregadas, O pegajoso humor, que o sono ajunta. Critilo, o teu Critilo é quem te chama; Ergue a cabeça da engomada fronha Acorda, se ouvir queres coisas raras. "Que coisas, (tu dirás), que coisas podes Contar que valham tanto, quanto vale Dormir a noite fria em mole cama, Quando salta a saraiva nos telhados E quando o sudoeste e outros ventos Movem dos troncos os frondosos ramos?" É doce esse descanso, não te nego. Também, prezado amigo, também gosto De estar amadornado, mal ouvindo Das águas despenhadas brando estrondo, E vendo, ao mesmo tempo, as vãs quimeras, Que então me pintam os ligeiros sonhos. Mas, Doroteu, não sintas que te acorde; Não falta tempo em que do sono gozes: Então verás leões com pés de pato, Verás voarem tigres e camelos, Verás parirem homens e nadarem Os roliços penedos sobre as ondas. Porém que têm que ver estes delírios Co'os sucessos reais, que vou contar-te? Acorda, Doroteu, acorda, acorda; Critilo, o teu Critilo é quem te chama. Levanta o corpo das macias penas; Ouvirás, Doroteu, sucessos novos, Estranhos casos, que jamais pintaram Na idéia do doente, ou de quem dorme Agudas febres, desvairados sonhos Não és tu, Doroteu, aquele mesmo Que pedes que te diga se e verdade O que se conta dos barbados monos Que à mesa trazem os fumantes pratos? Não desejas saber se há grandes peixes, Que abraçando os navios com as longas, Robustas barbatanas, os suspendem, Inda que o vento, que d'alheta sopra, Lhes inche os soltos, desrinzados panos? Não queres que te informe dos costumes. Dos incultos gentios? Não perguntas Se entre eles há nações, que os beiços furam? E outras que matam, com piedade falsa, Aos pais, que afrouxam ao poder dos anos? Pois se queres ouvir notícias velhas Dispersas por imensos alfarrábios, Escuta a história de um moderno chefe. Que acaba de reger a nossa Chile, Ilustre imitador a Sancho Pança. E quem dissera, amigo, que podia Gerar segundo Sancho a nossa Espanha! Não penses, Doroteu, que vou contar-te Por verdadeira história uma novela Da classe das patranhas, que nos contam Verbosos navegantes, que já deram Ao globo deste mundo volta inteira. Uma velha madrasta me persiga, Uma mulher zelosa me atormente, E tenha um bando de gatunos filhos, Que um chavo não me deixem, se este chefe Não fez ainda mais do que eu refiro. Ora pois, doce amigo, vou pintá-lo Da sorte que o topei a vez primeira; Nem esta digressão motiva tédio Como aquelas que são dos fins alheias, Que o gesto, mais o traje nas pessoas Faz o mesmo que fazem os letreiros Nas frentes enfeitadas dos livrinhos, Que dão, do que eles tratam, boa idéia. Tem pesado semblante, a cor é baça. O corpo de estatura um tanto esbelta Feições compridas e olhadura feia, Tem grossas sobrancelhas, testa curta, Nariz direito e grande, fala pouco Em rouco, baixo som de mau falsete Sem ser velho, já tem cabelo ruço E cobre este defeito e fria calva À força de polvilho, que lhe deita. Ainda me parece que o estou vendo No gordo rocinante escarranchado As longas calças pelo umbigo atadas, Amarelo colete e sobre tudo Vestida uma vermelha e justa farda De cada bolso da fardeta, pendem Listadas pontas de dois brancos lenços; Na cabeça vazia se atravessa Um chapéu desmarcado, nem sei como Sustenta o pobre só do laço o peso. Ah! tu, Catão severo, tu que estranhas O rir-se um cônsul moço, que fizeras Se em Chile agora entrasses e se visses Ser o rei dos peraltas quem governa? Já lá vai, Doroteu, aquela idade Em que os próprios mancebos, que subiam À honra do governo, aos outros davam Exemplos de modéstia, até nos trajes. Deviam, Doroteu, morrer os povos Apenas os maiores imitaram Os rostos e os costumes das mulheres Seguindo as modas e raspando as barbas. Os grandes do país, com gesto humilde Lhe fazem, mal o encontram, seu cortejo; Ele austero os recebe, só se digna Afrouxar do toitiço a mola um nada, Ou pôr nas abas do chapéu os dedos. Caminha atrás do chefe um tal Robério Que entre os criados tem respeito de aio; Estatura pequena, largo o rosto, Delgadas pernas e pançudo ventre, Sobejo de ombros, de pescoço falto; Tem de pisorga cores e conserva As bufantes bochechas sempre inchadas. Bem que já velho seja, inda presume De ser aos olhos das madamas grato E o demo lhe encaixou que tinha pernas Capazes de montar no bom ginete Que rincha no Parnaso. Pobre tonto! Quem te mete em camisas de onze varas! Tu só podes cantar, em coxos versos E ao som da má rebeca, com que atroas Os feitos do teu amo e os seus despachos. Ao lado de Robério, vem Matúsio, Que respira do chefe o modo e o gesto. É peralta rapaz de tesas gâmbias, Tem cabelo castanho e brancas faces, Tem um ar de mylord e a todos trata Como a inúteis bichinhos; só conversa Com o rico rendeiro, ou quem lhe conta Das moças do país as frescas praças. Dos bolsos da casaca dependura As pontas perfumadas dos lencinhos, Que é sinal, ou caráter, que distingue Aos serventes das casas dos mais homens, Assim como as famílias se conhecem Por herdados brasões de antigas armas. Montado em nédia mula vem um padre Que tem de capelão as justas honras. Formou-se em Salamanca, é homem sábio. Já do mistério do Pilar um dia. Um sermão recitou, que foi um pasmo. Labregão no feitio e meio idoso. Tem olhos encovados, barba tesa, Fechadas sobrancelhas, rosto fusco, Cangalhas no nariz. Ah! quem dissera Que num corpo, que tem de nabo a forma, Haviam pôr os céus tão grande caco! O resto da família é todo o mesmo, Escuso de pintá-lo. Tu bem sabes Um rifão que nos diz, que dos domingos Se tiram muito bem os dias santos. Ah! pobre Chile, que desgraça esperas! Quanto melhor te fora se sentisses As pragas, que no Egito se choraram, Do que veres que sobe ao teu governo Carrancudo casquilho, a quem rodeiam Os néscios, os marotos e os peraltas! Seguido, pois, dos grandes entra o chefe No nosso Santiago junto à noite. A casa me recolho e cheio destas Tristíssimas imagens, no discurso, Mil coisas feias, sem querer, revolvo. Por ver se a dor divirto, vou sentar-me Na janela da sala e ao ar levanto Os olhos já molhados. Céus, que vejo! Não vejo estrelas que, serenas, brilhem, Nem vejo a lua que prateia os mares: Vejo um grande cometa, a quem os doutos Caudato apelidaram. Este cobre A terra toda co’ disforme rabo. Aflito o coração no peito bate, Erriça-se o cabelo, as pernas tremem. O sangue se congela e todo o corpo Se cobre de suor. Tal foi o medo. Ainda bem o acordo não restauro Quando logo me lembra que este dia É o dia fatal, em que se entende Que andam, no mundo, soltos, os diabos. Não rias, Doroteu, dos meus agouros; Os antigos romanos foram sábios, Tiveram agoureiros: estes mesmos Muitas vezes choraram, por tomarem Os avisos celestes como acasos. Ajuntavam-se os grandes desta terra. À noite, em casa do benigno chefe Que o governo largou. Aqui, alegres, Com ele se entretinham largas horas Depostos os melindres da grandeza, Fazia a humanidade os seus deveres No jogo e na conversa deleitosa. A estas horas entra o novo chefe Na casa do recreio e, reparando Nos membros do congresso, a testa enruga, E vira a cara, como quem se enoja. Porque os mais, junto dele não se assentem Se deixa em pé ficar a noite inteira. Não se assenta, civil, da casa o dono Não se assenta, que é mais, a ilustre esposa; Não se assenta, também, um velho bispo E a exemplo destes, o congresso todo. Pensavas, Doroteu, que um peito nobre, Que teve mestres, que habitou na corte Havia praticar ação tão feia Na casa respeitável de um fidalgo, Distinto pelo cargo que exercia E, mais ainda, pelo sangue herdado? Pois inda, caro amigo, não sabias Quanto pode a tolice e vã soberba. Parece, Doroteu, que algumas vezes, A sábia natureza se descuida. Devera, doce amigo, sim, devera Regular os natais conforme os gênios. Quem tivesse as virtudes de fidalgo, Nascesse de fidalgo e quem tivesse Os vícios de vilão, nascesse embora, Se devesse nascer, de algum lacaio, Como as pombas, que geram fracas pombas, Como os tigres, que geram tigres bravos. Ah! se isto, Doroteu, assim sucede Estava o nosso chefe mesmo ao próprio Para nascer sultão do Turco Império, Metido entre vidraças, reclinado Em coxins de veludo e vendo as moças, Que de todas as partes o cercavam, Coçando-lhe umas, levemente, as pernas E as outras abanando-o, com toalhas: Só assim, Doroteu, o nosso chefe Ficaria de si um tanto pago. Chegou-se o dia da funesta posse: Mal os grandes se ajuntam, desce a escada E, sem mover cabeça, vai meter-se Debaixo do lustroso e rico pálio. Caminham todos juntos para o templo, Um salmo se repete, em doce coro, A que ele assiste, desta sorte inchado, Entesa mais que nunca o seu pescoço. Em ar de minuete o pé concerta E arqueia o braco esquerdo sobre a ilharga. Eis aqui, Doroteu, o como param Os maus comediantes, quando fingem As pessoas dos grandes, nos teatros. Acabada a função, à casa volta; (Os grandes o acompanham, descontentes), Co’a mesma pompa com que foi ao templo. Tu já viste o ministro carrancudo A quem os tristes pretendentes cercam, Quando no régio tribunal se apeia, Que, bem que humildes em tropel o sigam, Não pára, não responde, não corteja? Tu já viste o casquilho, quando sobe A casa em que se canta e em que se joga, Que deixa à porta as bestas e os lacaios, Sem sequer se lembrar que venta e chove? Pois assim nos tratou o nosso chefe: Mal à porta chegou, de chefe antigo, Com ele se recolhe e até ao mesmo Luzido, nobre corpo do senado Não fala, não corteja, nem despede. Da sorte que o lacaio a sege arruma Por não tomar a rua às outras seges, Assim os cidadãos o pálio encostam Ao batente da porta e, quais lacaios, Na rua, esperam que seu amo desça, Ou, a ele ficar, que os mande embora. À vista desta ação indigna e feia, Todo o congresso se confunde e pasma. Sobe às faces de alguns a cor rosada, Perdem outros a cor das roxas faces; Louva esta o proceder do chefe antigo, Aquele o proceder do novo estranha, E os que podem vencer do gênio a força Aos mais escutam, sem dizer palavra. São estes, louco chefe, os sãos exemplos Que, na Europa, te dão os homens grandes? Os mesmos reis não honram aos vassalos? Deixam de ser, por isso, uns bons monarcas? Como errado caminhas! O respeito Por meio das virtudes se consegue E nelas se sustenta. Nunca nasce Do susto e do temor, que aos povos metem injúrias, descortejos e carrancas. Findou-se, Doroteu, a longa história Da entrada deste chefe, agora vamos, Que e tempo, descansar um breve instante. Nas outras contarei, prezado amigo, Os fatos, que ele obrou no seu governo, Se acaso os justos céus quiserem dar-me. Para tanto escrever, papel e tempo.
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