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  • A Divina Comédia/Inferno/XII
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  • Como a ruína, que daquém de Trento, O Ádige feriu, por terremoto Ou por faltar de chofre o fundamento; Do viso ao val do monte, que foi roto, Tão derrocada vê-se a penedia, Que a descê-la o caminho é quase imoto. A ribanceira assim nos parecia. E à borda do penedo fracassado De Creta o monstro infame se estendia, Da falsa vaca torpemente nado. Apenas viu-nos, se mordeu fremente, Como quem pela raiva é devorado. “Cuidas” — bradou-lhe o sábio incontinente — “Ser de Atenas o príncipe, o que à morte Lá sobre a terra te arrojou valente? Voltou depois do rio o vau passando.
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  • Canto XII
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  • por Dante Alighieri, tradução de José Pedro Xavier Pinheiro
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  • Como a ruína, que daquém de Trento, O Ádige feriu, por terremoto Ou por faltar de chofre o fundamento; Do viso ao val do monte, que foi roto, Tão derrocada vê-se a penedia, Que a descê-la o caminho é quase imoto. A ribanceira assim nos parecia. E à borda do penedo fracassado De Creta o monstro infame se estendia, Da falsa vaca torpemente nado. Apenas viu-nos, se mordeu fremente, Como quem pela raiva é devorado. “Cuidas” — bradou-lhe o sábio incontinente — “Ser de Atenas o príncipe, o que à morte Lá sobre a terra te arrojou valente? “Arreda, bruto! Que este é de outra sorte; Da tua irmã não recebera ensino; De vós outros vem ver a pena forte”. Qual touro desprendido, quando o tino Mortal golpe lhe rouba, que não pode Correr, mas salta a vacilar mofino: Assim o Minotauro. O Mestre acode Dizendo-me: “Demanda presto a entrada E desce, enquanto em vascas se sacode”. — A quebrada descíamos formada De pedras soltas; cada qual, movida, Cedia, em sendo por meus pés calcada. E eu cismava. Ele disse: — “Tens sorvida A mente na ruína, que do horrendo Monstro a ira defende já vencida. “Deves saber que, de outra vez descendo Até o extremo lá do baixo inferno, Esta rocha não vi, como a estás vendo, “Mas, pouco antes de vir se bem discerno, Aquele que há tomado a grande presa, A Dite, lá no círculo superno, “Deste val tremeu tanto a profundeza, Que sentisse pensei todo o universo O amor, com que alguém diz ter certeza “De que ao caos muita vez será converso. Foi aqui, noutras partes, nesse instante, Roto o velho penhasco em treva imerso. “Mas olha o vale: o rio é não distante De sangue, onde verás fervendo aquele, Que violência exerceu no semelhante. “Ó ira louca, ó ambição, que impele Na curta vida nossa, ao inferno arrasta E para sempre nos submerge nele!” — Eis uma cava divisei mui vasta, Que abrangia, arqueada, o plano inteiro, Como dissera quem do mal me afasta. No espaço, a que o penhasco é sobranceiro, Centauros correm, setas agitando, Como soíam no viver primeiro. Descer nos vendo, pára o ardido bando. Três de entre eles então nos demandaram, Os arcos e arremessos preparando. Os brados de um de longe nos soaram: — “Vós, que desceis, dizei a pena vossa; De lá falai, ou tiros se disparam!” — Virgílio respondeu: — “Resposta nossa Terá Quiron de perto, sem demora. Sempre te dana a pressa que te apossa”. — Tocou-me e disse: — “Quem nos fala agora É Nesso, o que morreu por Dejanira; Mas se vingou de quem fatal lhe fora. “Esse do meio, que o seu peito mira, Aio de Aquiles, é Quiron famoso; Esse outro é Folo, sempre aceso em ira”. — Aos mil em volta ao rio sanguinoso As almas seteavam, que excediam, Mais do que é dado, o líquido horroroso. Àqueles monstros que ágeis se moviam, Chegamo-nos. Quiron com seta ajeita Os cabelos, que os lábios lhe encobriam. Quando desta arte a larga boca afeita, Disse à companha: — “Haveis já reparado Que move aquele tudo, em que os pés deita? “Nunca assim pés de morto hão caminhado”. O Guia meu, que junto já lhe estava Do peito, onde era um ser noutro enleado, — “Vivo está, vem comigo” — lhe tornava — “A visitar o val maldito, escuro Para cumprir dever, que lho ordenava. “Deixando de cantar o hosana puro Alguém me há cometido o cargo novo. Não é ladrão, nem eu esp’rito impuro: Em nome do poder, por quem eu movo Os passos meus em tão medonha estrada, Envia algum, que escolhas no teu povo, “Por nos mostrar a parte acomodada Ao vau, e no seu dorso haver transporte Quem não é sombra ao vôo aparelhada”. Quiron volveu-se à destra e a Nesso forte — “Torna atrás” — disse — “e serve-lhes de guia: Que outro bando o caminho lhes não corte!” — Já partimos na fida companhia, As ondas costeando rubras, quentes, Donde agudo estridor ao ar subia. Té os cílios no sangue os padecentes Eu vi. Disse o Centauro: — “São tiranos Truculentos e em roubo preminentes. “Chora-se aqui por feitos desumanos. Alexandre aqui está, Dionísio antigo Que gemer fez Sicília tantos anos. “De negra coma, aqui sofre o castigo Azzolino; e o que está, louro, ao seu lado Obizzio d’Este, ao qual (verdade eu digo) “Roubara a vida o pérfido enteado”. — E o Vate, a quem voltei-me, assim dizia: — “O segundo lugar me é reservado”. — Pouco além parou Nesso: olhar queria Uma turba, que, estando submergida, Toda a cabeça para fora erguia, Disse, indicando uma alma retraída: “Perante Deus um coração ferira, Que inda Londres venera estremecida”. — A cabeça vi de outros, que subira Do rio à superfície e o inteiro busto, Suas feições no mundo eu distinguira: Ia baixando o sangue até que a custo Os pés cobria a quem passar quisesse: O fosso ali vencemos já sem custo. “Se desta parte o borbulhão parece Do rio escassear, eu te asseguro” — Disse Nesso — “que mais engrossa e desce “Na parte oposta até juntar-se ao escuro Pego em que, como hás visto, a tirania As penas dá no seu tormento duro. “A divina justiça lá crucia Esse Átila, que açoite foi da terra, Pirro e Sexto; e redobrar-se a agonia “Dos dois Renatos, que tamanha guerra Fizeram nas estradas, salteando, — O Pazzo e o de Corneto”. — E a fala cerra. Voltou depois do rio o vau passando.
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