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| - Há muitos anos, Íris já foi um planeta como a Terra. Lá moravam brilhantes cientistas e engenheiros, mentes fantásticas, e uma civilização tecnológica avançadíssima progrediu até as fronteiras do conhecimento, criando uma rede de inteligência artificial que aos poucos foi se encarregando de todos os afazeres mundanos, e a população passou a viver de mera contemplação e entretenimento. Ou assim contam as lendas... pois em algum momento mal registrado da história, por algum motivo esquecido no tempo, a maior parte da população que se supunha ter o planeta desapareceu, junto com toda a tecnologia, que nunca mais foi desenvolvida. No lugar da antiga civilização, por um longo tempo perdurou uma cultura nômade, e conta a história que nessa época o planeta era deserto e silencioso, os homens se unindo em famílias para lutar pelos pouquíssimos recursos. Mas apesar de nômades e belicosas, os líderes dessas tribos ainda mantinham muito da sabedoria da antiga cultura, e um deles, Tarik Hussein, voltou sua atenção para alguns manuscritos deixados por uma pequena fração da sociedade antiga que se dedicava a estudar a espiritualidade humana. Tarik assim descobriu o poder das Bênçãos e das Maldições. Com esse poder, Tarik queria recriar Íris, transformando-a em um lugar de recursos abundantes onde os homens pudessem ser irmãos não apenas pelo sangue. Porém Tarik tinha medo que, ao recriar o mundo, a história se repetisse. De qualquer forma, Tarik resolveu continuar estudando, e deixou para decidir mais tarde o quê fazer quanto a isso. Os estudos de Tarik progrediram rápido, e com eles veio uma mudança radical em seu comportamento. Os homens da tribo de Tarik começaram a tratá-lo como um santo, e aos poucos outras tribos ficaram sabendo e mandavam emissários para ouvir sua mensagem. Nessa época, ele abençoava as pessoas que vinham, e assim elas tinham grande sucesso em suas vidas. Mas sabendo que um dia viria sua morte, Tarik começou a ensinar seus filhos, e os filhos dos líderes das tribos aliadas que estavam dispostos a aceitá-lo como mestre. Mas ele apenas ensinava-lhes sobre as Bênçãos, e nunca revelou a ninguém o poder das Maldições, apesar de continuar a estudá-las. Uma vez, Tarik visitava uma tribo vizinha, e deparou-se com o seguinte problema: uma mãe não tinha o que dar de comer a seu filho, e dizia que o sofrimento pelo qual isso a fazia passar era tão grande, tão grande que se em um dia Tarik não lhe mostrasse um sofrimento maior, ela mataria o menino. Tarik ficou perplexo, e dedicou-se exaustivamente à tarefa, não parando sequer para comer ou dormir. Mas depois das longuíssimas vinte e quatro horas, a mulher ainda não estava convencida da existência de sofrimento maior, e foi matar o filho. Tarik ficou apenas olhando, uma tristeza seca como o deserto em seus olhos, enquanto a mãe atravessava a rua até a casa onde estava a criança. No meio da via, ela encontrou-se com uma outra mulher, que disse umas poucas palavras e depois seguiu caminhando. A mãe então correu para a casa e voltou com o filho no colo, chorando e gritando: "Tarik Yam, Tarik Yam, a santa salvou! A santa salvou!" (Yam é a forma respeitosa de se dirigir a uma pessoa santa) Maravilhado com o ocorrido, Tarik partiu imediatamente atrás da mulher, e pôde vê-la deixando a cidade em um cavalo. Tarik pegou também sua montaria e partiu atrás dela, deserto adentro. A mulher parecia saber quem a estava seguindo, pois não parou para inquerir, nem acelerou para fugir. Pelo contrário, após percorrer um curto trajeto até o Oásis mais próximo, ela desceu do cavalo e esperou. Quando Tarik chegou ela prestou reverência e disse-lhe: "O maior sofrimento de uma mãe... é ver um de seus filhos ter o que comer e não repartir com os outros. Pois aí morreu a família, e sem a família, não há mãe, não há filhos." Tarik parou quieto, viu o rosto da linda mulher, e em menos de duas semanas ele e Nayara Hanna estavam casados. Nayara era filha de artesãos de uma tribo muito peculiar, cujos integrantes acreditavam poder sentir a vontade das plantas e do solo, e os seus artesãos, como eram os pais de Nayara, até de suas ferramentas. E não era apenas uma questão de fé, eles realmente ouviam, ou então sofriam todos de uma alucinação coletiva. Tendo os pais que teve, Nayara logo aprendeu a sentir, e tornou-se especialmente hábil nesse aspecto. Foi quando percebeu que era a única capaz de sentir a emoção de animais e mesmo pessoas, que Nayara decidiu errar pelo mundo à procura de uma experiência de vida maior. Com suas habilidades, ela tornou-se uma espécie de santa dos nômades, e caminhava de cidade em cidade ajudando pessoas. Uma vez, estava passando por um vilarejo e soube da história da mãe que desafiou Tarik Yam, de quem ela já havia ouvido falar inúmeras vezes. Desnecessário dizer que a própria natureza da história despertou seu interesse, ainda mais envolvendo uma pessoa que poderia ter tantas experiências únicas para compartilhar. Nayara então esperou para ver se Tarik solucionava o problema, e quando viu-o falhar, interviu da forma mais discreta, pois saberia que assim chamaria a máxima atenção de Tarik. Quando eles encontraram-se no Oásis e puderam conversar, o amor já era inevitável. E assim foi que os amantes trocaram sua sabedoria, e juntos puderam expandir seu conhecimento da espiritualidade de formas que sozinhos eles nem imaginavam. Tarik aprendeu que aquilo que ele estava estudando eram apenas os extremos da reta, enquanto Nayara vivia no continuum, e Nayara aprendeu que por trás de sua habilidade havia uma realidade espiritual a ser experimentada e contemplada, e Tarik mostrou-lhe que era possível influenciar além de sentir, e transformar a si mesma assim como aos outros. Com essa nova concepção, unificada, as habilidades de Nayara e Tarik não paravam de frutificar. A certo ponto, Nayara até mesmo descobriu uma maneira de nunca envelhecer, e ensinou isto a Tarik. Mas Tarik continuava a manter secreto seu conhecimento das Maldições. Dessa maneira eles viveram, proliferando e compartilhando seus conhecimentos, dividindo também com seus discípulos, e viveram por décadas, por séculos, por mil anos. Um milênio após a humanidade ser reduzida a povos nômades e primitivos ela já mostrava ares de renascença e tinha chegado à idade das descobertas, graças à Bênção do casal e à sabedoria legada dos antigos e guardada pelos chefes das tribos. Junto com os homens, o planeta encontrava sua primavera, dando vida à vegetação e alimento para todos. Ao mesmo tempo, a pergunta voltava à mente de Tarik: "O quê fazer para que a história não se repita, quando eu nem sequer sei o que aconteceu", e a resposta estava nas mãos de Nayara, mas a solução definitiva seria muito mais custosa e macabra do que Tarik jamais soube. Sabendo da aflição de seu amado, Nayara decidiu que deveria pedir auxílio àquela mais antiga que os antigos: o próprio planeta Íris. Após uma era, ela havia superado todas as barreiras e tornado-se capaz de comunicar-se com a soma de tudo. Dos eventos que se seguiram, sabe-se apenas que Nayara e Tarik sacrificaram suas almas, e que Tarik invocou uma maldição sobre a própia Íris, cujas consequências incluem o surgimento do que hoje nós conhecemos por Magia, mas cujas razões, junto com o que eles descobriram, foram seladas sob um véu de lendas e mistério, um silêncio como só havia no deserto onde teve início a sua história.
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