About: dbkwik:resource/TbbCl_rUwE9NYUg-Hl3UXQ==   Sponge Permalink

An Entity of Type : owl:Thing, within Data Space : 134.155.108.49:8890 associated with source dataset(s)

AttributesValues
rdfs:label
  • O Asa Negra
rdfs:comment
  • Quando, em 185... poucos momentos antes de nascer Raimundo, sua mãe curtia as dores do parto e curvava-se instintivamente, agarrando-se aos móveis e às paredes, mandaram chamar a toda pressa a única parteira que naquele tempo havia na pequena cidade de Alcântara. A comadre prodigalizava, naquele momento, os cuidados da sua arte hipotética à mãe de Aureliano, que era mais rica. Só algumas horas mais tarde pôde acudir ao chamado; mas já não era tempo: a mãe sucumbira à eclampsia; o filho salvara-se por um milagre, que ficou até hoje gravado na tradição obstétrica de Alcântara. Imagem:Separator.jpg
dcterms:subject
dbkwik:resource/RQXmPcyd2wFf2CmVCz207g==
  • O Asa Negra
dbkwik:pt.poesia/p...iPageUsesTemplate
Autor
  • Artur de Azevedo
abstract
  • Quando, em 185... poucos momentos antes de nascer Raimundo, sua mãe curtia as dores do parto e curvava-se instintivamente, agarrando-se aos móveis e às paredes, mandaram chamar a toda pressa a única parteira que naquele tempo havia na pequena cidade de Alcântara. A comadre prodigalizava, naquele momento, os cuidados da sua arte hipotética à mãe de Aureliano, que era mais rica. Só algumas horas mais tarde pôde acudir ao chamado; mas já não era tempo: a mãe sucumbira à eclampsia; o filho salvara-se por um milagre, que ficou até hoje gravado na tradição obstétrica de Alcântara. O pobre órfão devia sofrer, enquanto vivesse, as terríveis conseqüências, não só da inépcia das mulheres que assistiram a sua mãe, como do falecimento desta. Era aleijado, entanguecido, e tinha a cabeça singularmente achatada, nas cavidades frontais, pela pressão grosseira de dedos imperitos. Um menino feio, muito feio. Imagem:Separator.jpg Quando Raimundo entrou para a escola, já lá encontrou Aureliano, rapazito lindo, vigoroso e rubicundo; mas uma antipatia invencível afastou-o logo desse causador involuntário dos infortúnios que lhe cercaram o berço. Aureliano, que era de um natural orgulhoso, não perdia ensejo de vingar-se da antipatia do outro. Não houve diabrura de que o não acusasse falsamente, e, como Raimundo não era estimado, por ser feio, não encontrava defesa, e estendia resignado a mão pequenina às palmatoadas estúpidas do mestre escola. Isto acontecia diariamente. O mestre, afinal. cansado de castigá-lo em pura perda, pois que as acusações continuavam da parte de Aureliano, expulsou-o da escola; e, como não houvesse outra em Alcântara, o bode expiatório cresceu à bruta, sem instrução, não tendo achado no mundo espírito compadecido que lhe levasse um raio de luz à treva da inteligência medíocre. Mais tarde meteram-no a bordo de um barco, e mandaram-no para a capital, consignado a uma casa de comercio. Aí encontrou Raimundo um protetor desinteressado, que lhe mandou ensinar primeiras letras e rudimentos de escrituração mercantil. A prática faria o resto. Dentro de algum tempo o menino, que já contava dezesseis anos, deveria entrar, corno ajudante de guarda-livros, para certo escritório de comissões; mas oito dias antes daquele em que devia tomar conta do emprego, morreu inesperadamente o seu protetor. Entretanto, Raimundo apresentou-se, no dia aprasado, em casa do futuro patrão. — Cá estou eu. — Quem é você? — O ajudante de guarda-livros de quem lhe falou o defunto Sr. F. — Ah! sim... lembra-me... mas o meu amiguinho chore na cama que é lugar quente; o serviço não podia esperar, e eu tive que admitir outra pessoa. E apontou para um rapaz que, sentado, em mangas de camisa, a uma carteira elevada, parecia absorvido pelo trabalho de escrita. — Ah! murmurou despeitado o infeliz alcantarense. O outro levantou os olhos, e Raimundo reconheceu-o: era Aureliano, que tinha os lábios arqueados por um sorriso verdadeiramente satânico. Imagem:Separator.jpg Passaram-se alguns meses, durante os quais Raimundo passeou a sua penúria pelas ruas de S. Luís. Andava maltrapilho e quase descalço. Arranjou, afinal, um modesto emprego braçal, numa agência de leilões. Só quatro anos mais tarde julgou prudente trocá-lo por um lugar de condutor de bonde. Durante todo esse tempo, Aureliano, o seu asa-negra, moveu-lhe toda a guerra possível. Diariamente lhe chegavam aos ouvidos os impropérios gratuitos e as pequeninas intrigas do seu patrício. Raimundo convenceu-se de que Aureliano, rapaz simpático e geralmente estimado na sociedade em que ambos viviam, nascera no mesmo momento em que ele, como um estorvo ao mecanismo da sua existência. Era o seu asa-negra. Imagem:Separator.jpg Foi no bonde que Raimundo viu pela primeira vez os olhos negros e inquietos de Leopoldina. Não se descreve a paixão que lhe inspirou essa morena bonita, cujos contornos opulentos causariam inveja às louras napéias de Rúbens. A rapariga tinha nos olhos a altivez selvagem e nos lábios a volúpia ingênita das mamelucas. O seu cabelo grosso, abundante e negro, prendia-se, enrolado no descuido artístico das velhas estátuas gregas, deixando ver um cachaço que estava a pedir, não os beijos de um Raimundo anêmico e doentio, porém as rijas dentadas de um gigante. Pois Raimundo, que não era nenhum Polifemo, um belo dia conduziu ao altar a mameluca bonita, e até o instante da cerimônia esteve, coitado, vê não vê o momento em que Aureliano surgia inopinadamente de trás do altar-mor, para arrebatar-lhe a noiva. Infelizmente assim não sucedeu. Nos primeiros tempos de casado, tudo lhe correu às mil maravilhas; mas pouco a pouco a sua insuficiência foi se tornando flagrante. O seu organismo fazia prodígios para corresponder às exigências da esposa, cuja natureza não lhe indagava das forças. As mulheres ardentes e mal-educadas, como Leopoldina, quando lhe faltam os maridos com a dosimetria do amor, confundem a miséria do sangue com a pobreza da casa. Questão de disfarçar sentimentos, e de aplicar o abstrato ao concreto. Leopoldina, que até então se contentara com a aurea mediocritas relativa do condutor de bonde, começou um dia a manifestar apetites de luxo, a sonhar frandulagens e modas. De então em diante tornou-se um inferno a existência doméstica de Raimundo. Ano e meio depois de casado, ele evitava a convivência da esposa, jantava com os amigos, e só aparecia em casa para pedir ao sono forças para o trabalho do dia seguinte. Imagem:Separator.jpg Mas, de uma feita em que se viu forçado a ir à casa em hora desacostumada, surpreendeu Leopoldina nos braços hercúleos de Aureliano. Excitado pelo desespero, cresceu para eles frenético, espumante; mas os quatro braços infames desentrelaçaram-se das criminosas delicias, e repeliram-no vigorosamente. O pobre marido rolou sobre os calcanhares, e caiu de chapa, estatelado, sem sentidos. Quando voltou a si, os dois amantes haviam desaparecido. Raimundo não derramou uma lágrima, e voltou cabisbaixo para o trabalho. Ao chegar à estação dos bondes, o chefe de serviço repreendeu-o, fazendo-lhe ver que a sua falta se tornara sensível. Despedi-lo-ia, se não fosse empregado antigo, que tão boas provas dera até então de si. O alcantarense ergueu a cabeça. Os olhos desvairados saltavam-lhe das órbitas com lampejos estranhos. E respondeu coisas incoerentes. Estava doido. Dali a uma semana, foi para Alcântara, requisitado por um tio, derradeiro destroço de toda a família. Pouco tempo durou, iludindo a vigilância do parente, saiu de casa uma noite, e atirou-se ao mar, afogando consigo as suas desgraças nas águas da Baía de São Marcos. Imagem:Separator.jpg Dois dias depois deste suicídio, a Ilha do Livramento, árido promontório situado perto de Alcântara, em frente àquela Baia de São Nilarcos, regurgitava alegremente de povo. Realizava-se a festa de Nossa Senhora, e os fiéis afluíam, tanto da capital como de Alcântara, à velha ermida solitária. Aureliano, alcantarense da gema e figura obrigada de todas as festas e romarias, compareceu também ao arraial, exibindo publicamente a sua personalidade, que se tornara escandalosa depois do adultério de Leopoldina. No Maranhão as paredes não têm somente ouvidos, como diz o adágio: têm também olhos. Imagem:Separator.jpg Conquanto o céu anunciasse próxima borrasca, Aureliano resolveu deixar a Ilha do Livramento e embarcar, ao escurecer, numa delgada canoa, em demanda de Alcântara, onde tencionava pernoitar. A empresa era sem dúvida arriscada; mas lá, na colina escura que se refletia vagamente nas águas negras da baía, esperam-no os braços roliços da viúva do doido. Embarcou. Acompanhava-o apenas um remador, que desde pela manhã tomara a seu serviço. Imagem:Separator.jpg Em meio da viagem, soprou de súbito rijo nordeste, e o mar, que até então se conservara plácido e próspero, encapelou-se raivoso. Em três minutos as ondas esbravejavam já terrivelmente, e a canoa, erguida a grande altura, e de novo arremessada ao pélago, num estardalhaço de vagas, recebia no bojo quantidade de água suficiente para metê-la a pique. — Cada um cuide de si! bradou o remador, atirando-se ao mar, e oferecendo combate heróico à impetuosidade das ondas. Nadava que nem Leandro. Aureliano viu-se perdido. A canoa mergulhava. Ele não sabia nadar, o desgraçado! Preparou-se para morrer... A embarcação submergiu-se. O náufrago agitava instintivamente os braços e as pernas, esperando talvez que o desespero lhe ensinasse milagrosamente uma prenda que nunca aprendera. Debalde! Foi ao fundo, vertiginosamente. Voltou de novo à tona d'água, chamado à vida pelo seu sangue de moço. Bracejou... tentou bracejar... A sua mão encontrou alguma coisa fria. muito fria... que flutuava. Agarrou-se a esse objeto salvador... boiou muito tempo com ele... e com ele finalmente foi arremessado à praia... O cadáver de Raimundo salvara Aureliano.
Alternative Linked Data Views: ODE     Raw Data in: CXML | CSV | RDF ( N-Triples N3/Turtle JSON XML ) | OData ( Atom JSON ) | Microdata ( JSON HTML) | JSON-LD    About   
This material is Open Knowledge   W3C Semantic Web Technology [RDF Data] Valid XHTML + RDFa
OpenLink Virtuoso version 07.20.3217, on Linux (x86_64-pc-linux-gnu), Standard Edition
Data on this page belongs to its respective rights holders.
Virtuoso Faceted Browser Copyright © 2009-2012 OpenLink Software