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| - De tanta inspiração e tanta vida, Que os nervos convulsivos inflamava E ardia sem conforto... O que resta? — uma sombra esvaecida, Um triste que sem mãe agonizava... — Resta um poeta morto! Morrer! E resvalar na sepultura, Frias na fronte as ilusões! no peito Quebrado o coração! Nem saudades levar da vida impura Onde arquejou de fome... sem um leito! Em treva e solidão! Tu foste como o sol; tu parecias Ter na aurora da vida a eternidade Na larga fronte escrita... Porém não voltarás como surgias! Apagou-se teu sol da mocidade Numa treva maldita! Tua estrela mentiu. E do fadário De tua vida a página primeira Na tumba se rasgou... Pobre gênio de Deus, nem um sudário! Nem túmulo nem cruz! como a caveira Que um lobo devorou!... II Morreu um trovador! morreu de fome... Acharam-no deitado no caminho: Tão doce era o semblante! Sobre os lábios Flutuava-lhe um riso esperançoso; E o morto parecia adormecido. Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte Nas horas da agonia! Nem um beijo Em boca de mulher! nem mão amiga Fechou ao trovador os tristes olhos! Ninguém chorou por ele... No seu peito Não havia colar nem bolsa d'oiro: Tinha até seu punhal um férreo punho... Pobretão! não valia a sepultura... Todos o viram e passavam todos. Contudo era bem morto desde a aurora. Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel Um ceitil para a cova!... nem sudário! O mundo tem razão, sisudo pensa... E a turba tem um cérebro sublime! De que vale um poeta?... um pobre louco Que leva os dias a sonhar?... insano Amante de utopias e virtudes E, num templo sem Deus, ainda crente? A poesia é decerto uma loucura: Sêneca o disse, um homem de renome. É um defeito no cérebro... Que doUdos! É um grande favor, é muita esmola Dizer-lhes — bravo! à inspiração divina... E, quando tremem de miséria e fome, Dar-lhes um leito no hospital dos loucos... Quando é gelada a fronte sonhadora Por que há de o vivo, que despreza rimas, Cansar os braços arrastando um morto, Ou pagar os salários do coveiro? A bolsa esvaziar por um misérrimo, Quando a emprega melhor em lodo e vício? ... E que venham aí falar-me em Tasso! Culpar Afonso d'Est — um soberano, Por não lhe dar a mão da irmã fidalga! Um poeta é um poeta: apenas isso... Procure para amar as poetisas. Se na França a princesa Margarida, De Francisco primeiro irmã formosa, Ao poeta Alain Chartier adormecido Deu nos lábios um beijo... é que esta moça, Apesar de princesa, era uma douda... E a prova é que também rondós fazia. Se Riccio, o trovador, teve os amores — Novela até bastante duvidosa - Dessa Maria Stuart formosíssima, É que ela — sabe-o Deus! — fez tanta asneira... Que não admira que a um poeta amasse! Por isso adoro o libertino Horácio: Namorou algum dia uma parenta Do patrono Mecenas? Parasita... Só pedia dinheiro, no triclínio Bebia vinho bom... e não vivia Fazendo versos às irmãs de Augusto. E quem era Camões? Por ter perdido Um olho na batalha e ser valente, Às esmolas valeu. Mas quanto ao resto, Por fazer umas trovas de vadio, Deveriam lhe dar, além de glória, — E essa deram-lhe à farta! — algum bispado? Alguma dessas gordas sinecuras Que se davam a idiotas fidalguias? Deixem-se de visões, queimem-se os versos: O mundo não avança por cantigas. Creiam do poviléu os trovadores Que um poema não val meia princesa. Um poema, contudo, bem escrito, Bem limado e bem cheio de tetéias, Nas horas do café lido, fumando... Ou no campo, na sombra do arvoredo, Quando se quer dormir e não há sono, Tem o mesmo valor que a dormideira. Mas não passe dali do vate a mente. Tudo o mais são orgulhos, são loucuras... Faublas tem mais leitores do que Homero. Um poeta no mundo tem apenas O valor de um canário de gaiola... É prazer de um momento, é mero luxo. Contente-se em traçar nas folhas brancas De algum Álbum da moda umas quadrinhas: Nem faça apelações para o futuro. O homem é sempre o homem. Tem juízo. Desde que o mundo é mundo assim cogita. Nem há negá-lo: não há doce lira, Nem sangue de poeta ou alma virgem Que valha o talismã que no oiro vibra! Nem músicas nem santas harmonias Igualam o condão, esse eletrismo, A ardente vibração do som metálico... Imagem:Separator.jpg Meu Deus! e assim fizeste a criatura? Amassaste no lodo o peito humano? Ó poeta, silêncio! — é este o homem? A feitura de Deus! a imagem dele! O rei da criação!... Que verme infame! Não Deus, porém Satã no peito vácuo Uma corda prendeu-te — o egoísmo! Oh! miséria, meu Deus! e que miséria! III Passou El-Rei ali com seus fidalgos: Iam a degolar uns insolentes Que ousaram murmurar da infâmia régia, Das nódoas de uma vida libertina! Iam em grande gala. O Rei cismava Na glória de espetar no pelourinho A cabeça de um pobre degolado. Era um Rei bon-vivant e Rei devoto; E, como Luís XI, ao lado tinha O bobo, o capelão... e seu carrasco. O cavalo do Rei, sentindo o morto, Tremente de terror parou nitrindo, Deu d'esporas leviano o cavaleiro E disse ao capelão: "E não enterram Esse homem que apodrece, e no caminho Assusta-me o corcel?" Depois voltou-se E disse ao camarista de semana: "Conheces o defunto? Era inda moço, Daria certamente um bom soldado. A figura é esbelta! Forte pena! Podia bem servir para um lacaio." Descoberto, o faceiro fidalgote Responde-lhe fazendo a cortesia: "Pelas tripas do Papa! eu não me engano, Leve-me Satanás se este defunto Ontem não era o trovador Tancredo!" "Tancredo!" murmurou erguendo os óculos Um anfíbio, um barbaças truanesco, Alma de Triboulet, que além de bobo Era o vate da corte! bem nutrido, Farto de sangue, mas de veia pobre, Caidos beiços, volumoso abdoômen, Grisalha cabeleira esparramada, Tremendo narigão, mas testa curta, Em suma um glosador de sobremesas. "Tancredo! — repetiu imaginando - Um asno! só cantava para o povo! Uma língua de fel, um insolente! Orgulho desmedido... e quanto aos versos Morava como um sapo n'água doce! Não sabia fazer um trocadilho..." O rei passou — com ele a companhia! Só ficou ressupino e macilento Da estrada em meio o trovador defunto! IV Ia caindo o sol. Bem reclinado No vagaroso coche madornado Depois de bem jantar fazendo a sesta, Roncava um nédio, um barrigudo frade... Bochechas e nariz, em cima uns óculos Vermelho solidéu... enfim um bispo, E um bispo, senhor Deus! da idade média, Em que os bispos — como hoje e mais ainda - Sob o peso da cruz bem rubicundos, Dormindo bem, e a regalar bebendo, Sabiam engordar na sinecura! Papudos santarrões, depois da missa, Lançando ao povo a bênção — por dinheiro! O cocheiro ia bêbado por certo: Os cavalos tocou p'lo bom caminho Mesmo em cima das pernas do cadáver... Refugou a parelha, mas o sota — Que ao sol da glória episcopal enchia De orgulho e de insolência o couro inerte, Cuspindo o poviléu, como um fidalgo Que em falta de miolo tinha vinho Na cabeça devassa — deu de esporas... Como passara sobre a vil carniça Raléu de corvos negros, foi por cima... Mas desgraça! maldito aquele morto! Desgraça!... não porque pisasse o coche Aqueles magros ossos, mas a roda Na humana resistência abalroando... E acorda o fradalhão... "O que sucede? — Pergunta bocejando, é algum bêbado? Em que bicho pisaram?" "Senhor bispo, — Triunfante responde o bom cocheiro Ao vigário de Cristo, ao santo Apóstolom Rebento da fidalga raça nova Que não anda de pé como S. Pedro, Nem estafa os corcéis de S. Francisco - "Perdoe Vossa Excelência Eminentíssima, É um pobre diabo de poeta... Um homem sem miolo e sem barriga Que lembrou-se de vir morrer na estrada!" "Abrenúncio! rouqueja o santo bispo, Leve o Diabo essa tribo de boêmios! Não há tanto lugar onde se morra? Maldita gente! inda persegue os Santos Depois que o Diabo a leva!..." E foi caminho. Leve-te Deus! Apóstolo da crença, Da esperança e da santa caridade! Tu, sim, és religioso e nos altares Vem cada sacristão, e cada monge Agita a teus pés o seu turíbulo! E o sangue do Senhor no cálix d'oiro Da turba na oração te banha os lábios... Leve-te Deus, Apóstolo da crença! Sem padres como tu que fora o mundo? É por ti que o altar apóia o trono! É teu olhar que fertiliza os vales, Fecunda a vinha santa do Messias! Leve-te Deus... ou leve-te o Demônio! V Caiu a noite do azulado manto, Como gotas de orvalho, sacudindo Estrelas cintilantes. Veio a lua, Banhando de tristeza o céu profundo, Trazer aos corações melancolia, E no éter cheiroso derramar Cerúlea chama! — Dia incerto e pálido Que ao lado da floresta as sombras junta E golfa pelas águas das campinas Alvacentos clarões que as flores bebem! A galope, de volta do noivado, Passa o Conde Solfier e a noiva Elfrida: Seguem fidalgos que o sarau reclama. Elfrida — Não vês, Solfier, ali da estrada em meio Um defunto estendido? Solfier — Ó minha Elfrida, Voltemos desse lado: outro caminho Se dirige ao castelo. É mau agouro Por um morto passar em noites destas. Mas Elfrida aproxima o seu cavalo. Elfrida "Tancredo!... Vede!?... é o trovador Tancredo! Coitado! assim morrer! um pobre moço... Sem mãe e sem irmã! E não o enterram? Neste mundo não teve um só amigo! "Ninguém, senhora! respondeu da sombra Uma dorida voz. Eu vim, há pouco, Ao saber que do povo no abandono Jazia como um cão, eu vim... e eu mesmo Cavei junto do lago a cova dele." Elfrida "Tendes um coração: tomai, mancebo, Tomai essa pulseira... Em ouro e jóias Tem bastante pra erguer-lhe um monumento E para longas missas lhe dizerem Pelo repouso d'alma..." O moço riu-se. O Desconhecido "Obrigado: guardai as vossas jóias. Tancredo o trovador morreu de fome! Passaram-lhe no corpo frio e morto, Salpicaram de lodo a face dele, Talvez cuspissem nesta fronte santa, Cheia outrora de eternas fantasias, De idéias a valer um mundo inteiro!... Por que lançar esmolas ao cadáver? Leva-as, fidalga, tuas jóias belas: O orgulho do plebeu as vê sorrindo... Missas?... bem sabe Deus se neste mundo Gemeu alma tão pura como a dele! Foi um anjo! e murchou-se como as flores Morreu sorrindo, como as virgens morrem... Alma doce que os homens enjeitaram, Lírio, que a turba imunda profanou Oh! não te mancharei, nem a lembrança Com o óbolo dos ricos! Pobre corpo, És o templo deserto, onde habitava O Deus que em ti sofreu por um momento! Dorme, pobre Tancredo! eu tenho braços: Na cova negra dormirás tranqüilo... Tu repousas ao menos!" Imagem:Separator.jpg No entanto sofreando a custo a raiva, Mordendo os lábios de soberba e fúria, Solfier da bainha arranca a espada, Avança ao moço e brada-lhe: "Insolente!, Cala-te, doudo! Cala-te, mendigo! Não vês quem te falou? Curva o joelho, Tira o gorro, vilão..." O Desconhecido "Tu vês: não tremo! Tu não vales o vento que salpica Tua fronte de pó. Porque és fidalgo, Não sabes que um punhal vale uma espada Dentro do coração?" Mas logo Elfrida: "Acalma-te, Solfier! O triste moço Desespera, blasfema e não me insulta. Perdoa-me também, mancebo triste! Não pensei ofender tamanho orgulho: Tua mágoa respeito. Só te imploro Que sobre a fronte ao trovador desfolhes Essas flores, as flores do noivado De uma triste mulher... E quanto às jóias, Lança-as no lago... Mas quem és? teu nome?" O Desconhecido "Quem sou? um doudo, uma alma de insensato Que Deus maldisse e que Satã devora! Um corpo moribundo em que se nutre Uma centelha de pungente fogo! Um raio divinal que dói e mata, Que doira as nuvens e amortalha a terra!... Uma alma como o pó em que se pisa! Um bastardo de Deus! um vagabundo A que o gênio gravou na fronte — anátema! Desses que a turba com o seu dedo aponta... Mas não; não hei de sê-lo! eu juro n'alma, Pela caveira, pelas negras cinzas De minha mãe o juro!... Agora há pouco, Junto de um morto reneguei do gênio, Quebrei a lira à pedra de um sepulcro... — Eu era um trovador, sou um mendigo..." Ergueu do chão a dádiva d'Elfrida, Roçou as flores aos trementes lábios, Beijou-as. Sobre o peito de Tancredo Pousou-as lentamente... "Em nome dele, Agradeço estas flores do teu seio, Anjo que sobre um túmulo desfolhas Tuas últimas flores de donzela!" Depois vibrou na lira estranhas mágoas, Carpiu à longa noite escuras nênias, Cantou: banhou de lágrimas o morto. De repente parou: vibrou a lira Co'as mãos iradas, trêmulas... e as cordas Uma por uma rebentou cantando... Tinha fogo no crânio, e sufocava: Passou a fria mão nas fontes úmidas, Abriu a medo os lábios convulsivos, Sorriu de desespero; e sempre rindo Quebrou as jóias e as lançou no abismo... VI No outro dia na borda do caminho, Deitado ao pé de um fosso aberto apenas, Viu-se um mancebo loiro que morria... Semblante feminil, e formas débeis, Mas nos palores da espaçosa fronte Uma sombria dor cavara sulcos. Corria sobre os lábios alvacentos Uma leve umidez, um ló d'escuma, E seus dentes a raiva constringira... Tinha os punhos cerrados... Sobre o peito Acharam letras de uma língua estranha... E um vidro sem licor — fora veneno!... Ninguém o conheceu: mas conta o povo Que, ao lançá-lo no túmulo, o coveiro Quis roubar-lhe o gibão, despiu o moço... E viu... talvez é falso... níveos seios... Um corpo de mulher de formas puras... VII Na tumba dormem os mistérios d'ambos: Da morte o negro véu não há erguê-lo! Romance obscuro de paixões ignotas, Poema d'esperança e desventura, Quando a aurora mais bela os encantava, Talvez rompeu-se no sepulcro deles! Não pode o bardo revelar segredos Que levaram ao céu as ternas sombras: — Desfolha apenas nessas frontes puras Da extrema inspiração as flores murchas...
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