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  • A Divina Comédia/Inferno/XX
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  • Eu era já disposto tanto, quanto Fora preciso para ver o fundo Da cava, que banhava amargo pranto. De almas vi turba, pelo val rotundo, Que taciturna vinha e lacrimosa Ao passo usado em procissões no mundo. Mirei mais baixo e cada desditosa Notei que fora o mento retorcido Do colo ao começar: cousa espantosa! Para o dorso era o rosto seu volvido: Só recuando caminhar podia; Que em frente olhar estava-lhe tolhido. Talvez por força já de par’lisia De alguém o corpo ao todo se torcesse; Não vi: crê-lo difícil me seria. Assim falando, a passo igual seguia.
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  • Canto XIX
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  • por Dante Alighieri, tradução de José Pedro Xavier Pinheiro
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  • Eu era já disposto tanto, quanto Fora preciso para ver o fundo Da cava, que banhava amargo pranto. De almas vi turba, pelo val rotundo, Que taciturna vinha e lacrimosa Ao passo usado em procissões no mundo. Mirei mais baixo e cada desditosa Notei que fora o mento retorcido Do colo ao começar: cousa espantosa! Para o dorso era o rosto seu volvido: Só recuando caminhar podia; Que em frente olhar estava-lhe tolhido. Talvez por força já de par’lisia De alguém o corpo ao todo se torcesse; Não vi: crê-lo difícil me seria. Que te seja, Leitor, a Deus prouvesse Proveitosa a lição! Pensa, atilado, Quanto em mim, vendo, a compaixão crescesse, O parecer humano tão mudado, Que o pranto, que dos olhos derivava Banhava o tergo a cada condenado. Do rochedo eu a um ângulo chorava Com tanta dor, que o Mestre de repente — “Insensato és também?” — me interrogava. “Aqui piedade é morte em toda mente: Quando Deus condenou, quem mais malvado Do que esse, que ternura por maus sente? “Alça a fronte, alça, atento ao condenado, Que ante os Tebanos se abismou na terra. Gritavam-lhe: — Como andas apressado, “Anfiarau? Como assim foges da guerra? — Ele tombava entanto, ao val descendo, Onde Minos os réprobos aferra. “Pelo futuro penetrar querendo, Tem o dorso adiante em vez do peito, E a recuar caminha, atrás só vendo. “Eis Tirésias, o que mudara o aspeito, Femíneas formas e feições tomara, Sendo-lhe o que era varonil desfeito. “Ao sexo seu tornou, quando encontrara, Inda uma vez, travadas serpes duas E outra vez com bordão as separara. “Volta-lhe Arons ao ventre as costas nuas: De Luni em monte, aos agros iminentes, Onde o Carrara ergueu moradas suas, “Teve em gruta marmórea permanente Estância, donde contemplar podia As estrelas, as ondas livremente. “Essa mulher” — continuou meu Guia — “Que o seio oculta em traça flutuante E de velos a pele tem sombria, “Foi Manto, que vagara incerta e errante Até pousar na terra, em que hei nascido. No que ora digo irei um pouco avante. “Vendo o pai já da vida despedido E a cidade de Baco em jugo triste, O mundo largo tempo há percorrido. “Junto ao Alpes na bela Itália existe, Além Tirol, já perto da Alemanha, Um lago, que chamar Benaco ouviste. “Veia de fontes mil, que a plaga banha Entre Garda, Camônica e Apenino, De águas conduz ao lago cópia manha. “Ilha há no meio, em que o Pastor trentino, E com ele os de Bréscia e de Verona, Possuem de benzer juro divino. “Onde é mais baixa do Benaco a zona, A Bérgamo fazendo e a Bréscia frente, Pesqueira, forte em bastiões, se entona. “É dali que das águas o excedente, Que ter em si não pode o lago, brota Em rio e cobre os prados largamente. “Quando prossegue, outro apelido adota, Chama-se Míncio, perde o nome antigo: No Pó junto a Governol, há fim sua rota. “No verão à saúde traz perigo; Em vasto plaino o álveo dilatando, Forma paul, das infeções amigo. “Manto, a virgem selvage ali passando, Terreno viu desabitado, inculto Naquele pantanal, que o está cercando “Esquiva a humano trato e estranho vulto, Fez ali de suas artes oficina E viveu té sofrer da morte o insulto. “Povo, ao diante, para ali se inclina, Em torno esparso, e abrigo, o julga forte: De águas cercado com pauis confina. “Onde aqui o elegeu colhera a morte, A cidade erigiram, que chamaram Mântua, do nome seu sem tirar sorte. “Os habitantes lá mais avultaram, Quando ainda os ardis de Pinamonte De Casalodis a insânia não fraudaram. “Ciente fica, pois: se de outra fonte A pátria minha originar quiserem, A mentira à verdade nunca afronte”. — — “As cousas, que tuas vozes me referem, Tão certas são” — disse eu — “que me parece Carvão extinto o que outros me disserem. “Mais dize, ó Mestre: acaso não merece Dos que avançam nenhum reparo ou nota? Na mente de o saber desejo cresce”. — — “Aquele, a quem do mento ao dorso brota Barba esquálida, um áugur se dizia, Quando de homens a Grécia tal derrota Teve, que infantes só no berço havia. Em Áulide com Calcas indicara Tempo, em que a frota desferrar devia. “Eurípilo chamou-se: assim narrara Num dos seus cantos, a tragédia minha, Bem sabes, pois tua mente a arrecadara. “Esse, que, tão delgado, se avizinha, Miguel Escotto foi, que, certamente, Perícia em fraudes da magia tinha. “Olha Guido Bonati, encara Asdente Que cuidar só devera da sovela: Arrepende-se agora inutilmente. “Das tristes ora a turba se revela, Que, desdenhando a agulha, a horrível arte De encantos infernais acharam bela. “Mas no limite, que hemisférios parte, É Caim com seu fardo, o mar tocando, Lá de Sevilha além do baluarte. “A lua, a face plena já mostrando (Te lembras?) ontem viste na sombria Selva, em que te ajudou seu fulgor brando”. — Assim falando, a passo igual seguia.
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