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| - Beatriz, sem sorrir-se, me dizia: — O sorriso contenho; de outra sorte, Como Semele, em cinzas te veria. Minha beleza, viste já, mais forte Refulge, quanto mais se eleva a escada, Por onde ascende para a eterna corte. Teu vigor, se não fora moderada, Ao seu fulgor, de todo fenecera, Qual fronde, pelo raio espedaçada. À sétima chegamos clara esfera, Que sob o peito do Leão ardente Da luz mais viva do que de antes era. Teus olhos acompanhe pronta a mente; Sejam-te espelho a quanto este astro belo, Que um espelho é também, fará patente. — Quem bem coubesse a força do desvelo, Com que a vista em seu gesto se pascia, Quando voltei-me a impulso de outro anelo, Quanto contente fui conheceria, Minha guia celeste obedecendo, Após uma gozando outra alegria. No cristal, que, em seu giro se movendo, O nome do Monarca tem querido, Que a todo vício foi flagelo horrendo, De áurea cor, em que o sol é refletido, Escada vi de tão sublime altura, Que o topo aos olhos stava-me escondido. Pelos degraus brilhando com luz pura Descia soma tanta de esplendores, Que os clarões todos ver se me afigura. Como, ao seu modo, aos matinais albores, As gralhas, pelos ares se movendo, Aquecem-se, do frio nos rigores, Umas se vão não mais voltar querendo, Tornam outras, buscando o pouso amado, Rodam outras, os vôos seus contendo: Tal dos lumes o bando sublimado Pela escada formosa parecia, Até certo degrau terem tocado. E o que parou mais perto resplendia Tão claro, que eu pensei: — Luz, que eu venero Em ti, amor, em que ardes, denuncia. Mas Beatriz de quem sinal espero Pra dizer ou calar, grave emudece: Eu pois o anelo meu, reprimir quero. Ela, que o meu pensar então conhece, Pois quem tudo prevê lho manifesta, — Cumpre — disse — o que a mente ora apetece. — E comecei: — Direito não me presta A resposta o meu mérito apoucado: Mas por aquela, que o valor me empresta, Espírito ditoso, que velado Stás por tua alegria, me declara Por que tão perto a mim te hás colocado; E por que muda está na esfera clara Do paraíso a doce sinfonia, Que tão devota noutras escutara. — — Como os olhos o ouvido — respondia — Tens mortal: nesta esfera não se canta, Nem Beatriz sorri, como soía. Tantos degraus desci da escala santa De prazer por te dar mostra evidente Em vozes e na luz que me abrilhanta. Não que me apresse o afeto mais ardente, Pois lá por cima igual ou mais se acende, Como te prova o flamejar ingente. Mas alta caridade, que nos prende A quem por seu querer tudo governa, Quais vês, marca os lugares como entende. — — Bem conheço — tornei — sacra luzerna, Como o livre amor do céu na corte Basta para cumprir vontade eterna; Mas como, entre a dos teus santa coorte, Tu só chamado a este cargo hás sido, Por discernir não hei mente assaz forte. — A voz final não tendo proferido, Qual veloz roda, sobre si girando, Volveu-se o lume, súbito movido. O amor, que encerrava, então falando — Em mim dardeja — disse — a luz divina, Esta, que me circunda, penetrando. Com meu ver, sua ação, que assim combina, Tanto me alteia, que a Suprema Essência, Donde ela emana, a mim se descortina. Daí vem do meu júbilo esta ardência; Pois a minha visão quanto é mais clara, Da claridade em mim sobe a eminência. Alma, porém, que mais no céu se aclara, O serafim, que em Deus mais se embevece, Resposta ao teu dizer não deparara. Tanto o que me perguntas desparece Dos eternos conselhos no infinito, Que a vista a todos pávida esmorece. Ao mundo isto por ti deve ser dito, Que da verdade saiba quanto aberra, Os pés movendo ao transcedente fito. Alma, que é flama aqui, fumo é na terra: O que no céu jamais saber alcança, Como ver pode, quando a cinza a encerra? — Em tanto enleio o seu dizer me lança, Que humilde, outras perguntas evitando, Em lhe saber o nome pus a esp?rança. — De mares dois no meio demorando, De Florenca não longe, estão rochedos, Aos trovões sobranceiros se empinando. Catria chama-se a giba dos penedos: Ao pé se vê um claustro consagrado Da alma com Deus aos místicos segredos. — Terceira vez o santo me há tornado. E disse, prosseguindo: — Nessa ermida Somente a Deus servir me hei dedicado. Com suco de oliveira por comida, Contente a calma e frio suportava, Passando ali contemplativo a vida. Nesse retiro ao céu se aparelhava Ampla seara; estéril tanto agora, Que o véu já cai que o mal dissimulava. Fui Pedro Damiano; um Pedro outrora Dito Pecador junto ao Ádria esteve Na casa em que invocou Nossa Senhora. Da vida me restava espaço breve, Quando ao claustro arrancado, me cingiram Chapéu, que a indignas fontes já se deve. Magros descalços a missão cumpriram, O Vaso de Eleição e Cefas, tendo O pão de cada dia, que pediram. Hoje o pastor, a custo se movendo, Anda de um lado ao do outro carregado, Quem o sustente por de trás querendo. Seu manto, o palafrém tendo embuçado, Dois brutos numa pele está fingindo: Ó paciência, quanto hás suportado! — Calou-se. Luzes mil eu vi, fulgindo, Descer em veloz giro a excelsa escada: Seu brilho, em cada volta, ia subindo. Parando em torno a essa alma afortunada, A voz em som tão alto despediram, Que não pudera ser de outro igualada. Não sei, torvado, o que elas proferiram.
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