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  • A voz dos Sinos
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  • Tarde triste e silenciosa De vila de beira-mar: Uma tarde cor-de-rosa Que vai morrendo em luar... Ao longe, a várzea cintila De uns restos de sol poente: Mas, por sôbre tôda a vila — Do morro a que fica rente Desce uma sombra tranqüila — E anoitece lentamente. Não aparece viv’alma. Nem rumor da natureza, Nem eco de voz humana Perturba a infinita calma, A solitária tristeza Da pobre vila praiana. Nem se ouve o mar, longe, e manso. A tudo, em redor, invade Um ar de mole descanso... Silêncio... Imobilidade... Como que, interrompida, A correnteza da vida Fêz neste ponto um remanso. - II -
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  • A Voz dos Sinos
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Autor
  • Vicente de Carvalho
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  • Tarde triste e silenciosa De vila de beira-mar: Uma tarde cor-de-rosa Que vai morrendo em luar... Ao longe, a várzea cintila De uns restos de sol poente: Mas, por sôbre tôda a vila — Do morro a que fica rente Desce uma sombra tranqüila — E anoitece lentamente. Não aparece viv’alma. Nem rumor da natureza, Nem eco de voz humana Perturba a infinita calma, A solitária tristeza Da pobre vila praiana. Nem se ouve o mar, longe, e manso. A tudo, em redor, invade Um ar de mole descanso... Silêncio... Imobilidade... Como que, interrompida, A correnteza da vida Fêz neste ponto um remanso. De súbito, rumoreja Violentamente o ar: Na torrezinha da igreja Rompe o sino a badalar. Ponho-me atento, a escutá-lo: Que diz, alto e repentino, Esse bater de um badalo Num sino? Badalo que assim badalas No sino que assim ressoa, Aves, já nenhuma voa: Dormem: e vais acordá-las À toa... Vais espantar quanta môça Aí pelos arredores Depois de um dia de roça, De enxada e de soalheira, Dedica a tarde ligeira A tarefas bem melhores; Pelas discretas beiradas De alguma fonte; fiadas Na proteção pitoresca De ramagens, fôlhas, flôres; Que fazem elas? Coitadas, Bebem, nas mãos, água fresca... Lavam as caras tostadas... Ou cuidam dos seus amores... Badalo que assim badalas No sino que assim ressoa, Olha que vais espantá-las À toa... Badalas... E eu que te falo Não sei e nem imagino Que pretendes tu, badalo, A bater, bater no sino. Talvez convoques à ceia Pescadores que, lidando, Nem viram que entardeceu; Algum se estendeu na areia A descansar; senão quando, De cansado adormeceu... Badala-me assim, badala: Esperta este dorminhoco; Que ou ele, acordando, abala, Ou fica dormindo — e em troco Da sua madraçaria, Chegando à casa atrasado Acha no fogo apagado A caldeirada já fria. Badalo que assim badalas No sino que assim atroa, Porque é que tão alto falas À toa? A andar com menos demora Talvez tua voz compila Certo rei dos mandriões Encarregado em má hora De, nas três ruas da vila, Acender os lampiões... Chamas, talvez, ao seu pôsto... Quem? algum camaroeiro Retardado e mal disposto A seguir para o pesqueiro? Badala-lhe que é sol posto, Que a luz cheia está fora, Que, com pequena demora, Vai a maré a vazar: Para chegar à costeira Tem ele uma légua inteira De caminho a caminhar, Vencendo-a de combro em combro, De atoleiro em atoleiro, Com o remo e o puçá no ombro E, na mão, o candeeiro... Ruidoso sino da vila! E é por coisas tão vulgares Que atroas assim os ares De uma tarde tão tranqüila? - II - Badalo que assim badalas... Que voz de repente soa Acompanhando-te as falas À toa? É voz de gente que canta... De gente... E parece tanta. Da humilde igreja irradia E para o céu se alevanta A reza da Ave, Maria. As vozes e as badaladas Confundem-se... Misturadas No fervor da mesma prece, Sobem juntas para o ar Onde a lua resplandece E a noite, imensa, parece Feita do alvor do luar... Sobre a soleira da porta Da casa pegada à minha, Vejo sentada a vizinha: Moça, e bonita... Que importa? Tem nos braços o filhinho; Fala-lhe, toda carinho; Ele ouve; sorri, depois, Responde-lhe, balbucia... E, de mãos postas, os dois Murmuram a Ave, Maria. Ante meus olhos perpassa Uma visão: imagino Maria, cheia de graça, Jesus, loiro e pequenino. Uma tarde côr-de-rosa... Uma vila assim modesta, Assim tristonha como esta... De pescadores, também... Sobre a planície arenosa Por onde o Jordão deriva Pousa a sombra evocativa Das montanhas de Siquém... À porta de humilde choça, Uma mulher... Quem é ela? É pobre... é jovem... é bela... E é Mãe: comovida, a espaços O seu sorriso se adoça, O seu olhar se ilumina Para a figura divina Do filho que tem nos braços. Mostra-lhe, à noite que estrela O céu e que a terra ensombra, Como a terra é toda sombra Como o céu é todo luz... E o filho, enlevado nela, Em êxtase balbucia... A primeira Ave, Maria Quem a rezou foi Jesus. Sigo o meu sonho... imagino Que, por tôdas essas roças Aonde chega a voz do sino, A sombra triste das choças Frouxamente se alumia Da vela de cêra acesa Ante uma Virgem Maria Tendo nos braços Jesus. É a hora augusta da reza... Mães, pobres mães andrajosas De filhinhos seminus, No chão de terra ajoelhadas, Dizem coisas misteriosas, Palavras entrecortadas De mágoa que se lastima, De súplica, e de esperança A essa outra Mãe que, lá em cima, Na glória do céu, descansa Do que passou neste mundo. Ela que, com o mesmo eterno Requinte do amor materno, Sorriu a Jesus criança, Chorou Jesus moribundo, Lá, do alto céu infinito, Olha com olhos de Santa E de Mãe que já sofreu Tanto coração aflito Que se volta para o seu. Na roça a miséria é tanta... Quanta pobre gente, quanta, Expia o ser mal nascida Cumprindo a pena da vida Como pregada a uma cruz; E, na angústia que a quebranta, Somente espera e antegoza A proteção milagrosa Da virgem Mãe de Jesus!... Na roça a miséria é tanta... E cada choça sombria Para o claro céu levanta A reza da Ave, Maria. Não, tu não falas à toa; Errei, confesso-o... Perdoa, Ó sino humilde da vila, Que assim badalas, badalas, Na paz da tarde tranqüila; Ó sino, que também rezas, Ó sino, que tanto falas À terra, toda asperezas, Como ao céu, todo luar, Chamando, com o mesmo zêlo, Cada infeliz — a rezar, Nossa Senhora — a atendê-lo. Consolador de tristezas! Semeador de esperanças! Aqui nestas redondezas Não há vida tão bonanças Nem casebre tão remoto Onde quanto o sino diz Não abençoe um devoto, Não console um infeliz... Por essas várzeas tão êrmas Onde, perdidas e sós, Há tantas almas enfêrmas De desesperos sem voz, Onde tanto desdenhado De Deus, que decerto o olvida, Vive, até morrer, vergado Ao pêso da própria vida, Vais chamar, em altos gritos — Como se fosse a um dever — Desamparados e aflitos — Para o consolo de crer. E de casebre em casebre Onde gente, a vida inteira, Vive de trabalho e febre, Morre de fome e canseira, Afirmas à angústia surda Do mísero tabaréu Que o brejo em que êle chafurda — É um caminho para o céu. A cada pobre praiano Que, na sua dura lida De afrontar o largo oceano, Vive de arriscar a vida. Tu, consoladoramente, Falas para lhe lembrar Que há quem reze por a gente — E há céu por cima do mar... Da mesma igreja alvadia Evolam-se as badaladas E a reza da Ave, Maria. Evolam-se...Misturadas, Sobem juntas para o ar Onde, pálida e sozinha Tão alva, que resplandece, Tão só, que vai a sonhar, Caminha a lua, caminha, E o céu, imenso, parece Feito de sonho e luar... Humilde sino da vila, Que assim badalas, badalas, Na paz da tarde tranqüila; Não, tu não falas à toa: Percebo o que e a quem falas...
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