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  • Cartas Chilenas/X
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  • Quis, amigo, compor sentidos versos A uma longa ausência e, para encher-me De ternas expressões, de imagens tristes, A banca fui sentar-me, com projeto De ler, primeiramente, algumas obras No meu já roto, destroncado Ovídio. Abri-o nas saudosas alegrias E, quando me embebia na leitura Dos casos lastimosos, que ele pinta, Na passagem que fez ao Ponto Euxínio Encontro aqueles versos que descrevem As ondas decumanas; de repente Me sobe ao pensamento que estas eram Do nosso Fanfarrão imagem viva. Os mares, Doroteu, jamais descansam; Agitam sem cessar as verdes águas, E, depois que levantam ondas nove,
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Autor
  • Tomás Antonio Gonzaga
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  • Quis, amigo, compor sentidos versos A uma longa ausência e, para encher-me De ternas expressões, de imagens tristes, A banca fui sentar-me, com projeto De ler, primeiramente, algumas obras No meu já roto, destroncado Ovídio. Abri-o nas saudosas alegrias E, quando me embebia na leitura Dos casos lastimosos, que ele pinta, Na passagem que fez ao Ponto Euxínio Encontro aqueles versos que descrevem As ondas decumanas; de repente Me sobe ao pensamento que estas eram Do nosso Fanfarrão imagem viva. Os mares, Doroteu, jamais descansam; Agitam sem cessar as verdes águas, E, depois que levantam ondas nove, Com menos fortidão, despedem outra, Que corre mais ligeira e que se quebra Nos musgosos rochedos com mais força. Assim o nosso chefe não descansa De fazer, Doroteu, no seu governo, Asneiras sobre asneiras e, entre as muitas, Que menos violentas nos parecem, Pratica outras que excedem muito e muito As raias dos humanos desconcertos. Perdoa, minha Nise, que eu desista Do intento começado. Tu mil vezes Nos meus olhos já leste os meus afetos, Não careces de os ler nos meus escritos. Perdoa, pois, que eu gaste as breves horas A contar as asneiras desumanas Do nosso Fanfarrão ao caro amigo. E tu, meu Doroteu, antes que leias O que vou a contar-te, jurar deves Pelos olhos da tua amada esposa, Por seu louro cabelo, e pelo dia Em que viste, na sua alegre boca, O primeiro sorriso, que não hás-de Duvidar do que leres, bem que sejam Desordens que pareçam impossíveis. A Junta, Doroteu, a quem pertence Evitar contrabandos, prende, envia A sabia Relação do Continente A trinta delinqüentes, para serem Castigados conforme os seus delitos. Entende o nosso chefe que esta Junta Não devia mandar aos malfeitores Sem sua autoridade e, dela, toma O mais estranho, bárbaro despique. Manda embargar aos presos na cadeia Do nosso Santiago, e manda ao pobre Do condutor meirinho que os sustente, Assistindo, também, aos que enfermarem, Com médicos, remédios e galinhas. Acaba-se o dinheiro que lhe deram Para fazer os gastos do caminho; Recorre, neste aperto, ao bruto chefe, Expõe-lhe que não tem com que alimente Ao menos a si próprio; pede e roga Que o deixe recolher à pátria terra, Para nela exercer seu pobre oficio. Tão terna rogativa não merece Do chefe a compaixão; antes lhe ordena Que assista, como dantes, aos culpados De todo o necessário, na enxovia; Que, a faltar-lhe o dinheiro para os gastos, Ou que o peça, ou que o furte. Caro amigo, Da boca de uma Fúria sairia Mais dura decisão? Por que motivo Deve um pobre meirinho dar sustento A mais de trinta presos? São seus filhos? E, ainda a serem filhos, um pai justo, Que fazenda não tem, vive obrigado A sustentar infames malfeitores, Por meio de culpáveis latrocínios? Suponho, Doroteu, suponho ainda Que a Junta fez excesso na remessa Dos presos, sem licença. Neste caso Merece o condutor algum castigo? Ele fez outra coisa que não fosse Cumprir o que mandaram seus maiores? Podia repugnar-lhes, sem delito? Amigo Doroteu, o nosso chefe É qual mulher ciosa, que não pode Vingar no vário amante os duros zelos, E vai desafogar as suas iras, Bebendo o sangue de inocentes filhos. Depois de se passarem alguns anos, Depois que o bom meirinho já não tinha Vestido que vendesse, nem pessoa Que um chavo lhe fiasse, o bruto chefe Passa a fazer-um novo despotismo: Ordena que os culpados sejam soltos, E, dizem, lhes mandava vinte oitavas, Para os gastos fazerem da fugida. Até aqui pagou o seu desgosto O pobre condutor; agora o paga A triste, aflita pátria, pois lhe aumenta, Dos torpes malfeitores, a quadrilha. É esta, Doroteu, a sua gente; Trafica em coisa santa, no comércio Da compra e mais da venda de seixinhos, Negócio avantajado e mais seguro Que o meter entre os fardos das baetas, Os pesados galões e as drogas finas. Preza o bravo leão aos leões bravos, A fraca pomba preza as pombas fracas, E o homem, apesar do raciocínio Que a verdade lhe mostra, estima aos homens Que têm iguais paixões e os mesmos vícios. Avisam ao bom chefe que um ministro Queria que os soldados lhe mostrassem As ordens, com que entravam a fazerem Prisões no seu distrito. Investe o bruto Qual touro levantado, a quem acenam, C’os vermelhos droguetes, os capinhas; Escreve-lhe uma carta, em que lhe ordena Lhe dê logo as razoes, em que se funda. Inda pede as razões, e já lhe estranha O néscio proceder. Aqui não para Tão rápida desordem: manda um corpo De ousados militares, que conduzam, Ao magistrado, a carta, e lhes ordena Que fiquem nesta vila sustentados A custa, Doroteu, do aflito povo. Não se concede ao pobre que sustente, Em casa, o seu soldado; manda o chefe Que a cada um se dê, em cada um dia. Para sustento, meia oitava de ouro, Fora milho e capim para o cavalo; E não entrando aqui o régio soldo. Que santo proceder! Um Deus irado, Se houvessem sete justos, perdoava Os imensos delitos de Sodoma, E o nosso grande chefe, pelo crime, Pelo sonhado crime de um só homem, Castiga, como réu de majestade, Formado de inocentes, todo um povo. Faz penhora Macedo em certas barras Que, a um seu devedor, devia Mévio; Recorre ao magistrado Silverino, Pedindo que mandasse que o dinheiro A juízo viesse, pois queria Sobre ele disputar a preferência, Na forma que concede a lei do reino. Cita-se ao triste Mévio e deposita As barras em juízo, prontamente. Conhece Silverino que Macedo Para a vitória tem melhor direito, Não quer seguir a causa na presença De um reto magistrado, que profere, Na forma que as leis mandam, as sentenças. Recorre ao general, e o bruto chefe Decide desta sorte o longo pleito: Habita nesta terra um homem rico, Que tem de Albino o nome, e, dizem, trata A Mévio, devedor, por seu sobrinho. Manda pois, Doroteu, o grande chefe Que Albino se recolha na cadeia E more com os negros na enxovia, Enquanto não pagar a Silverino Outra tanta quantia, quanta Mévio Depositou, doloso, por que houvesse Entre os dois acredores um litígio. Eis aqui, Doroteu, o que é ciência! As nossas leis não querem que o pai solva O calote que fez o próprio filho E quer um general que Albino pague Da sórdida masmorra, novamente, A soma que pagou o bom sobrinho! Aonde existe o dolo? A lei não manda Que todo o que temer que alguém lhe peça Segundo pagamento, se segure Metendo no depósito o que deve? Pois se isto nos faculta o são direito, Que delito comete aquele triste Que a dívida em juízo deposita, Quando o sábio juiz assim o manda, Porque o mesmo credor assim o pede? E se Mévio fez dolo, por que causa Há-de Albino pagar a culpa dele? Porque lhe aconselhou que não pagasse Outra tanta quantia a Silverino? Aconselhar conforme as leis do reino É culpa que mereça um tal castigo? E pode ser castigo regulado Pagar o conselheiro aquela soma Que o mesmo aconselhado não devia? Não é isto furtar? Não é violência? Ah! pobre, ah! pobre povo, a quem governa Um bruto general, que ao céu não teme, Nem tem o menor pejo de lhe verem Tão indignas ações os outros homens! Há neste regimento um moço Adônis, Amores de uma escrava, cuja dona Depois de cativar a muitos peitos, . . Ao nosso herói atou, também, ao carro Dos seus cruéis triunfos. Cego nume! Qual é, qual é dos homens que não honra, Com puros sacrifícios, teus altares? Tu vences os pequenos, mais os grandes, Tu vences os estultos, mais os sábios, Tu, vences, que inda é mais, as mesmas feras E, bem que cinja o grosso peito d'aço, Não pode resistir às tuas setas O duro coração do próprio Marte. Intenta este soldado que o ministro Lhe remate umas casas e consegue Um despacho do chefe, em que decreta Que nelas ninguém lance: coisa estranha Que, entendo, nunca viu nenhuma idade! O reto magistrado, que respeita, Mais que ao chefe, as leis do seu monarca, Ordena que o porteiro, incontinenti, As pertendidas casas meta a lanço. Honrado cidadão o preço cobre; O porteiro passeia pela rua, Repete, em alta voz, o lanço novo E prossegue a falar, assim dizendo: "Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três, Dou-lhe outra mais pequena, afronta faço, Se ninguém mais me oferece, arremato". Ao lanço do Brandúsio ninguém chega, Informado o juiz, ordena e manda Que o prédio se remate; então se chega O porteiro risonho ao licitante, E lhe diz "que lhe faça bom proveito" Ao mesmo tempo que lhe entrega o ramo. Parte logo o soldado e conta ao chefe O sucesso da praça. O bruto monstro, Julgando profanado o seu respeito, Manda lançar no pobre licitante Um pesado grilhão e manda pô-lo, Ajoujado com um despido negro, A trabalhar nas obras da cadeia. O preso injuriado desfalece E o chefe desumano desce à rua Para que possa, de mais perto, vê-lo. Sucede a um desmaio outro desmaio; O negro companheiro, então, lhe acode, Nos braços compassivos o sustenta; Porem o velho chefe, que deseja O vê-lo, ali, morrer, por um soldado Manda ao negro dizer que ao preso deixe E cuide em prosseguir no seu trabalho. Os mesmos desumanos, que rodeiam Tão bruto general, aqueles mesmos Que, alegres, executam seus mandados, Apenas escutaram tal preceito, Um pouco emudeceram e tiveram Os rostos tristes, muito tempo, baixos. Os outros, Doroteu, deram suspiros E, bem que forcejaram, não puderam Fazer que os olhos não se enchessem d'água. Eu creio, Doroteu, que tu já leste Que um César dos romanos pertendera Vestir, ao seu cavalo, a nobre toga Dos velhos senadores. Esta história Pode servir de fábula, que mostre Que muitos homens, mais que as feras brutos, Na verdade conseguem grandes honras! Mas ah! prezado amigo, que ditosa Não fora a nossa Chile se, antes, visse Adornado um cavalo com insígnias De general supremo, do que ver-se Obrigada a dobrar os seus joelhos Na presença de um chefe, a quem os deuses Somente deram a figura de homem! Então, prezado amigo, o néscio povo Com fitas lhe enfeitara as negras clinas, Ornara a estrebaria com tapetes, Com formosas pinturas, ricos panos, Bordados reposteiros e cortinas; Um dos grandes da terra lhe levara Licor, para beber, em baldes d'ouro, Outro lhe dera o milho em ricas salvas; Mas sempre, Doroteu, aqueles néscios Que ao bruto respeitassem, poderiam Servi-lo acautelados e de sorte Que dar-lhes não pudesse um leve coice. Eis aqui, Doroteu, o que nos nega Uma heróica virtude. Um louco chefe O poder exercita do monarca E os súditos não devem nem fugir-lhe Nem tirar-lhe da mão a injusta espada. Mas, caro Doroteu, um chefe destes Só vem para castigo de pecados. Os deuses não carecem de mandarem Flagelos esquisitos; quasi sempre Nos punem com as coisas ordinárias. O mundo inda não viu senão um corpo Em branco sal mudado, e só no Egito Fez novas penas de Moisés a vara. Perguntarás agora que torpezas Comete a nossa Chile, que mereça Tão estranho flagelo? Não há homem Que viva isento de delitos graves, E, aonde se amontoam os viventes Em cidades ou vilas, ai crescem Os crimes e as desordens, aos milhares. Talvez prezado amigo, que nós, hoje, Sintamos os castigos dos insultos Que nossos pais fizeram; estes campos Estão cobertos de insepultos ossos De inumeráveis homens que mataram. Aqui ou europeus se divertiam Em andarem à caça dos gentios Como à caça das feras, pelos matos. Havia tal que dava, aos seus cachorros, Por diário sustento, humana carne, Querendo desculpar tão grave culpa Com dizer que os gentios, bem que tinham A nossa semelhança, enquanto aos corpos, Não eram como nós, enquanto às almas. Que muito, pois, que Deus levante o braco E puna os descendentes de uns tiranos Que, sem razão alguma e por capricho, Espalharam na terra tanto sangue.
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