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  • Cartas Chilenas/III
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  • Que triste, Doroteu, se pôs a tarde! Assopra o vento sul, e densa nuvem Os horizontes cobre; a grossa chuva, Caindo das biqueiras dos telhados Forma regatos, que os portais inundam. Rompem os ares colubrinas fachas De fogo devorante e ao longe soa, De compridos trovões, o baixo estrondo. Agora, Doroteu, ninguém passeia, Todos em casa estão, e todos buscam Divertir a tristeza, que nos peitos Infunde a tarde, mais que a noite feia. O velho Altimidonte, certamente, Tem postas nos narizes as cangalhas E revolvendo os grandes, grossos livros. C'os dedos inda sujos de tabaco, Ajunta ao mau processo muitas folhas
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Autor
  • Tomás Antonio Gonzaga
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  • Que triste, Doroteu, se pôs a tarde! Assopra o vento sul, e densa nuvem Os horizontes cobre; a grossa chuva, Caindo das biqueiras dos telhados Forma regatos, que os portais inundam. Rompem os ares colubrinas fachas De fogo devorante e ao longe soa, De compridos trovões, o baixo estrondo. Agora, Doroteu, ninguém passeia, Todos em casa estão, e todos buscam Divertir a tristeza, que nos peitos Infunde a tarde, mais que a noite feia. O velho Altimidonte, certamente, Tem postas nos narizes as cangalhas E revolvendo os grandes, grossos livros. C'os dedos inda sujos de tabaco, Ajunta ao mau processo muitas folhas De vãs autoridades carregadas. O nosso bom Dirceu, talvez que esteja. Com os pés escondidos no capacho, Metido no capote, a ler gostoso O seu Vergílio o seu Camões e Tasso. O termo Floridoro, a estas horas, No mole espreguiceiro se reclina A ver brincar, alegres, os filhinhos, Um já montado na comprida cana E outro pendurado no pescoço Da mãe formosa, que risonho abraça. O gordo Josefino está deitado, Nada lhe importa, nem do mundo sabe, Ao som do vento, dos trovoes e chuva, Como em noite tranqüila, dorme e ronca; O nosso Damião, enfim, abana Ao lento fogo com que, sábio, tira Os úteis sais da terra e o teu Critilo, Que não encontra, aqui, com quem murmure, Quando so murmurar lhe pede o gênio, Pega na pena e desta sorte voa, De cá, tão longe, a murmurar contigo. Já disse, Doroteu, que o nosso chefe, Apenas principia a governar-nos, Nos pertende mostrar que tem um peito Muito mais terno e brando, do que pedem Os severos ofícios do seu cargo. Agora, cuidarás, prezado amigo, Que as chaves das cadeias já não abrem, Comidas da ferrugem ? Que as algemas, Como trastes inúteis, se furtaram? Que o torpe executor das graves penas Liberdade ganhou ? Que já não temos Descalços guardiães, que à fonte levem, Metidos nas correntes, os forçados? Assim, prezado amigo, assim devia Em Chile acontecer, se o nosso chefe Tivesse, em governar, algum sistema. Mas, meu bom Doroteu, os homens néscios As folhas dos olmeiros se comparam: São como o leve fumo, que se move Para partes diversas, mal os ventos Começam a apontar, de partes várias. Ora, pois, doce amigo, atende o como No seu contrário vicio, degenera A falsa compaixão do nosso chefe, Qual o sereno mar, que, num instante, As ondas sobre as ondas encapela. Pertende, Doroteu, o nosso chefe Erguer uma cadeia majestosa, Que possa escurecer a velha fama Da torre de Babel e mais dos grandes, Custosos edifícios que fizeram, Para sepulcros seus, os reis do Egito. Talvez, prezado amigo, que imagine Que neste monumento se conserve Eterna, a sua glória, bem que os povos Ingratos não consagrem ricos bustos Nem montadas estátuas ao seu nome. Desiste, louco chefe, dessa empresa: Um soberbo edifício levantado Sobre ossos de inocentes, construído Com lágrimas dos pobres, nunca serve De glória ao seu autor, mas, sim, de opróbrio. Desenha o nosso chefe, sobre a banca, Desta forte cadeia o grande risco, A proporção do gênio e não das forças Da terra decadente, aonde habita. Ora, pois, doce amigo, vou pintar-te Ao menos o formoso frontispício. Verás se pede máquina tamanha Humilde povoado, aonde os grandes Moram em casas de madeira a pique. Em cima de espaçosa escadaria Se forma do edifício a nobre entrada Por dois soberbos arcos dividida; Por fora destes arcos se levantam Três jônicas colunas, que se firmam Sobre quadradas bases e se adornam De lindos capitéis, aonde assenta Uma formosa, regular varanda; Seus balaústres são das alvas pedras Que brandos ferros cortam sem trabalho. Debaixo da cornija, ou projetura, Estão as armas deste reino abertas No liso centro de vistosa tarja. Do meio desta frente sobe a torre E pegam desta frente, para os lados, Vistosas galerias de janelas A quem enfeitam as douradas grades. E sabes, Doroteu, quem edifica Esta grande cadeia? Não, não sabes. Pois ouve, que eu t’o digo: um pobre chefe Que, na corte, habitou em umas casas Em que já nem abriam as janelas. E sabes para quem? Também não sabes. Pois eu também t’o digo: para uns negros Que vivem, (quando muito), em vis cabanas, Fugidos dos senhores, lá nos matos. Eis aqui, Doroteu, ao que se pode Muito bem aplicar aquela mofa Que faz o nosso mestre, quando pinta Um monstro meio peixe e meio dama. Na sabia proporção é que consiste A boa perfeição das nossas obras. Não pede, Doroteu, a pobre aldeia Os soberbos palácios, nem a corte Pode, também, sofrer as toscas choças. Para haver de suprir o nosso chefe Das obras meditadas as despesas, Consome do senado os rendimentos E passa a maltratar ao triste povo, Com estas nunca usadas violências: Quer cópia de forçados que trabalhem Sem outro algum jornal, mais que o sustento E manda a um bom cabo que lhe traga A quantos quilombotas se apanharem Em duras gargalheiras. Voa o cabo, Agarra a um e outro e num instante Enche a cadeia de alentados negros. Não se contenta o cabo com trazer-lhe Os negros que têm culpas, prende e manda Também, nas grandes levas, os escravos Que não têm mais delitos que fugirem Às fomes e aos castigos, que padecem No poder de senhores desumanos. Ao bando dos cativos se acrescentam Muitos pretos já livres e outros homens Da raça do país e da européia Que, diz ao grande chefe, são vadios Que perturbam dos povos o sossego. Não há, meu Doroteu, quem não se molde Aos gestos e aos costumes dos maiores. Brincando, os inocentes os imitam, Se as tropas se exercitam, eles fingem As hórridas batalhas. Se se fazem Devotas procissões, também carregam Aos ombros os andores e as charolas. Os mesmos magistrados se revestem Do gênio e das paixões de quem governa. Se o rei é piedoso, são benignos Os severos ministros, se é tirano Mostram os pios corações de feras. Por isso, Doroteu, um chefe indigno É muito e muito mau, porque ele pode A virtude estragar de um vasto império. Os nossos comandantes, que conhecem A vontade do chefe, também querem Imitar deste cabo o ardente zelo. Enviam para as pedras os vadios Que. na forma das ordens, mandar devem Habitar em desterro novas terras. Ora, pois, doce amigo, já que falo Nos nossos comandantes, será justo Que te dê destes bichos uma idéia. A gente, Doroteu, que não se alista Nas tropas regulares forma corpos De bisonha ordenança. Não há terra Sem ter um corpo destes. Os seus chefes Ao capitão maior estão sujeitos, E são os que se chamam comandantes, Porque as partes comandam destes terços. Estes famosos chefes, quase sempre Da classe dos tendeiros são tirados. Alguns, inda depois de grandes homens, Se lhe faltam os negros, a quem deixam O governo das vendas, não entendem Que infamam as bengalas, quando pesam A libra de toucinho e quando medem O frasco de cachaça. Agora atende, Verás que desta escória se levanta De magistrados uma nova classe. Aos ricos taverneiros, disfarçados Em ar de comandantes, manda o chefe Que tratem da polícia e que não deixem Viver, nos seus distritos, as pessoas Que forem revoltosas. Quer que façam A todos os vadios uns sumários E que, sem mais processos, os remetam Para remotas partes, sem que destas Jurídicas sentenças, se faculte Algum recurso para mor alçada. Já viste, Doroteu, um tal desmancho? As santas leis do reino não concedem Ao magistrado régio, que execute, No crime, o seu julgado e o nosso chefe Quer que dêem as sentenças sem apelo Incultos comandantes, que nem sabem Fazer um bom diário do que vendem! Concedo, caro amigo, que estes homens São uns grandes consultos, que meteram Os corpos do direito nos seus cascos. Ainda assim pergunto: e como pode O chefe conceder-lhes esta alçada ? Ignora a lei do reino, que numera Entre os direitos próprios dos augustos A criação dos novos magistrados? O grande Salomão lamenta o povo Que sobre o trono tem um rei menino; Eu lamento a conquista a quem governa Um chefe tão soberbo e tão estulto Que, tendo já na testa brancas repas, Não sabe, ainda, que nasceu vassalo. Os néscios comandantes e o bom cabo, Que fez o nosso herói geral meirinho, Remetem, nas correntes, povo imenso. Parece, Doroteu, que temos guerras; Que, para recrutar as companhias, De toda a parte vêm chorosas levas. Aqui, prezado amigo, principia Esta triste tragédia, sim, prepara, Prepara o branco lenço, pois não podes Ouvir o resto, sem banhar o rosto Com grossos rios de salgado pranto. Nas levas, Doroteu, não vêm somente Os culpados vadios; vem aquele Que a dívida pediu ao comandante; Vem aquele, que pôs impuros olhos Na sua mocetona e vem o pobre, Que não quis emprestar-lhe algum negrinho, Para lhe ir trabalhar na roça e lavra. Estes tristes, mal chegam, são julgados Pelo benigno chefe a cem açoites. Tu sabes, Doroteu, que as leis do reino Só mandam que se açoitem com a sola Aqueles agressores, que estiverem. Nos crimes, quase iguais aos réus de morte. Tu também não ignoras que os açoites Só se dão, por desprezo, nas espáduas, Que açoitar, Doroteu, em outra parte Só pertence aos senhores, quando punem Os caseiros delitos dos escravos. Pois todo este direito se pretere: No pelourinho a escada já se assenta, Já se ligam dos réus os pés e os braços, Já se descem calções e se levantam Das imundas camisas rotas fraldas, Já pegam dois verdugos nos zorragues, Já descarregam golpes desumanos, Já soam os gemidos e respingam Miúdas gotas de pisado sangue. Uns gritam que são livres, outros clamam Que as sábias leis do rei os julgam brancos, Este diz que não tem algum delito Que tal rigor mereça, aquele pede Do justo acusador, ao céu, vingança. Não afrouxam os braços os verdugos, Mas, antes, com tais queixas, se duplica A raiva nos tiranos, qual o fogo .Que aos assopros dos ventos ergue a chama Às vezes, Doroteu, se perde a conta Dos cem açoites, que no meio estava, Mas outra nova conta se começa. Os pobres miseráveis já nem gritam. Cansados de gritar, apenas soltam Alguns fracos suspiros, que enternecem. Que é isso, Doroteu, tu já retiras Os olhos do papel? Tu já desmaias? Já sentes as moções, que alheios males Costumam infundir nas almas ternas? Pois és, prezado amigo, muito fraco, Aprende a ter o valor do nosso chefe Que à janela se pôs e a tudo assiste Sem voltar o semblante para a ilharga. E pode ser, amigo, que não tenha Esforço, para ver correr o sangue, Que em defesa do trono se derrama. Aos pobres açoitados manda o chefe Que, presos nas correntes dos forçados, Vão juntos trabalhar. Então se entregam Ao famoso tenente, que os governa Como sábio inspetor das grandes obras. Aqui, prezado amigo, principiam Os seus duros trabalhos. Eu quisera Contar-te o que eles sofrem, nesta carta, Mas tu, prezado amigo, tens o peito, Dos males que já leste, magoado, Por isto é justo que suspenda a história, Enquanto o tempo não te cura a chaga.
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