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  • A Divina Comédia/Purgatório/XXXI
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  • Que de revés já fora assaz pungente — “Diz se é verdade, diz! À culpa unida Esteja a confissão do penitente.” — Tanta a força mental foi confrangida, Que a voz desfaleceu, se erguer tentando, Expirou-me nas fauces inanida. Esperou; disse após: — “Que estás pensando? Responde: inda não tens nágua apagado Lembranças do passado miserando?” — No meu enleio, de temor travado, Um tão confuso sim, trêmulo, expresso, Que houve mister dos olhos ajudado. Como em besta entesada em grande excesso, Quebrando-se arco e corda, parte a seta E no alvo dá sem força do arremesso, Ao ar patente a face revelaste?
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  • Purgatório, Canto XXXI
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  • por Dante Alighieri, tradução de José Pedro Xavier Pinheiro
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  • Que de revés já fora assaz pungente — “Diz se é verdade, diz! À culpa unida Esteja a confissão do penitente.” — Tanta a força mental foi confrangida, Que a voz desfaleceu, se erguer tentando, Expirou-me nas fauces inanida. Esperou; disse após: — “Que estás pensando? Responde: inda não tens nágua apagado Lembranças do passado miserando?” — No meu enleio, de temor travado, Um tão confuso sim, trêmulo, expresso, Que houve mister dos olhos ajudado. Como em besta entesada em grande excesso, Quebrando-se arco e corda, parte a seta E no alvo dá sem força do arremesso, Stando minha alma em tanto extremo inquieta E em suspiros e lágrimas rompendo, Perdeu a voz o som, que a língua enceta. — “Se ao meu querer” — prossegue — “obedecendo Tinhas fanal, que ao bem te conduzisse, De anelos teus a mira ser devendo, “Onde o poder de estorvos, que impedisse Teus passos? Quais grilhões que os retivessem Na vereda, que avante ir permitisse? “Houve encantos, que a outros te prendessem, E delícias, que tanto te atraíram, Que a tua alma enlear assim pudessem?” — Do peito agros suspiros me saíram; Para falar-lhe apenas tive alento, E a voz a custo os lábios exprimiram. Tornei chorando: — “O engano, o fingimento Ao terreno prazer me hão transviado, Em vos nublando a face o passamento.” — — “Se ocultaras” — falou-me — “o teu pecado, A graveza da culpa ao claro vira Aquele, por quem deves ser julgado. “Mas se o réu, confessando, tem na mira O pesar do mau feito, em nossa corte Contra o fio da espada a mó se vira. “Entanto, por que seja em ti mais forte De errar o pejo e, no porvir ouvindo Sereias, não procedas de igual sorte, “Escuta-me, os teus prantos consumindo: Verás que, inda sepulta, eu te guiara, Pela contrária rota conduzindo. “Jamais arte ou natura te mostrara Enlevo, quanto a rara formosura Do corpo, em pó tornado, em que eu morara. “Se comigo baixara à sepultura Teu supremo prazer, como arrastar-te Pôde, após si, mortal delícia impura? “Enganos tais sentindo saltear-te, Aos céus alçando a mente deverias Té minha eternidade sublimar-te, “E não baixar do vôo, em que subias Te expondo a novos tiros, atraída Por jovem, por vaidades fugidias. “Será duas, três vezes iludida Ave inexperta; mas a seta, o laço Pássaro velho esquiva, apercebido.” — Qual menino, que a mãe por largo espaço Increpa; e, baixa a fronte, envergonhado Reconhece em silêncio o errado passo, Tal me achava. — “De ouvir se estás magoado. Levanta a barba!” — ainda prosseguia — “Olhando-me, hás de ser mais castigado!” — Com menos resistência abateria De Europa o vendaval carvalho altivo Ou da terra, que a Jarba obedecia, Do que eu alcei o rosto pensativo; Quando ela disse barba e não semblante A malícia notei e o seu motivo. Olhos erguendo alfim, do mesmo instante Aos ares vi que flores não lançava A falange dos anjos radiante. Tímida a vista a Beatriz achava Voltada ao Grifo, que uma só pessoa Em naturezas duas encerrava. Além do rio sob o véu e a c?roa Tanto excede a beleza sua antiga Quanto em vida as que mais fama apregoa. E do pesar pungiu-me tanto a urtiga, Que das cousas, que mais na terra amara A mais cara odiei como inimiga. Remorso tal a mente me assaltara, Que vencido tombei: qual fiquei sendo Sabe quem dor tão viva motivara. Ao coração a força me volvendo Notei a dama, que primeiro eu vira Ao lado meu, — “Abraçai-me!” — dizendo. Té ao colo no rio me imergira; E correndo, qual leve lançadeira, Das águas sobre a tona a si me tira. Já próximo à beatífica ribeira, Ouvi Asperges me tão docemente, Que o não descrevo ou lembro, inda que o queira. Matilde, abrindo os braços de repente, Cingiu-me a fronte e súbito afundou-me; Era dessa água haurir conveniente. Assim purificado, ela guiou-me Das damas quatro para a dança bela, E cada uma nos braços estreitou-me. — “Cada qual, ninfa aqui, nos céus estrela, Antes que Beatriz descesse ao mundo, Servas de ordem suprema somos dela. “Os seus olhos verás; mas no jucundo Lume interno hás de ter vista aguçada Pelas três cujo olhar é mais profundo.” — Modulando na angélica toada, Ante o Grifo consigo me levaram: Lá Beatriz para nós era voltada. — “Em contemplar sacia-te!” — falaram — “As esmeraldas que ora tens presentes, Donde os farpões de amor te vulneraram.” — Mais que a flama desejos mil ardentes Prenderam olhos meus aos seus formosos, Na adoração do Grifo persistentes. Qual sol no espelho, nesses luminosos Astros o Grifo se alternando, eu via Seres dois refletir misteriosos: Meu espanto, ó leitor, qual não seria Vendo o objeto na imagem transmutado, Quando constante em si permanecia? Enquanto eu de prazer e pasmo entrado, Esse doce manjar stava gozando, Que sacia mas sempre é desejado, De ordem mais alta ser manifestando Pelo meneio, as três se adiantaram, Por angélico estilo modulando. “Os olhos santos, Beatriz” — cantaram — “Oh! volve ao servo teu leal constante A quem por ver-te os passos não custaram. “Nos dá por grã mercê que o fido amante Sem véu segunda formosura Contemple nesse divinal semblante!” — Ó resplendor da luz eterna e pura! Quem do Parnaso à sombra descorando E da água sua haurindo alma doçura, Aturdido não fora, se arrojando A tentar descrever qual te mostraste, Quando o céu de harmonias te cercando, Ao ar patente a face revelaste?
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