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| - Como a primeira, outra cornija feita Circundava a colina, só dif?rente Em que a um arco menor ela se ajeita. Relevo, formas, como a precedente, Não mostra: e, lisa sobre a escarpa a entrada, Lívida cor a pedra tem somente. — Se a presença de alguém fosse esperada, Que nos preste conselho — diz meu Guia — Temo que fique a escolha retardada. — Os olhos para o sol depois erguia, E, sobre o pé direito se firmando, Para a esquerda girava e se volvia. — Tu, de quem tudo fio, ó lume brando No caminho conduz-nos que se of?rece Como o exige o lugar — disse — guiando! Raiando, o teu calor o mundo aquece: Se motivo não surge de embaraço, De conduzir-nos teu fulgor não cesse! Vencido em breve tínhamos espaço, Que por milha na terra calculamos, Porque o desejo estimulava o passo: Em direitura a nós voar julgamos Invisíveis espíritos, chamando De amor à mesa em lépidos reclamos. A voz primeira que passou voando, Vinum non habent proferiu sonora E ainda muito além foi reiterando. Mas antes de perder-se pelo ar fora, Outra acercou-se. — Orestes sou! — dizia; E apartou-se igualmente sem demora. — Que vozes estas são, Mestre? — inquiria. Mas, apenas falara, eis vem terceira. — Amai imigos vossos! — eu lhe ouvia. — Pune este círc?lo a culpa traiçoeira — O Mestre diz — da inveja; o açoite aplica O amor, que os rigores lhe aligeira. Contrário som, porém, o freio indica. Antes que atinjas do perdão a entrada, Terás de ouvi-lo; e disto certo fica. Tem ora a vista para além fitada; De espíritos, ao longo do alto muro, Assentados verás soma avultada. — Mais que de antes então a vista apuro; Almas distingo, que envolviam mantos, Que a cor imitam do penhasco duro. Um pouco avante ouvi de esp?ritos tantos A voz bradar: — Por nós orai, Maria, Pedro, Miguel e todos os mais Santos! Na terra homem tão fero não seria, Que não sentisse o coração pungido Em vendo o que aos meus olhos se of?recia. Acerquei-me por ser mais distinguido De cada sombra o menear e o gesto: Pelos olhos à dor alívio hei tido. Então foi claramente manifesto Que entre si, uns aos outros se arrimavam, Todos à pedra, em seu cilício mesto. Assim os pobres cegos mendigavam Nos dias de Perdão da igreja à porta, Mutuamente as cabeças encostavam; Pois a piedade o coração nos corta, Quando ao som das palavras se acrescenta Da vista a ação que o peito desconforta E como o sol aos cegos não se ostenta, Assim também às sombras que alivia, Não mais do céu a luz olhos alenta. Fio de ferro as pálpebras prendia A todas, como ao gavião selvage Para domar-lhe a condição bravia. Cuidei, se andasse, lhes fazer ultraje, Lhes vendo as faces e ocultando a minha: E o Mestre olhei em tácita linguage. E o Mestre, bem sabendo o que convinha, Antecipou-se logo ao meu desejo E disse: — Arguto sê, e fala asinha. — Virgílio caminhava neste ensejo Do lado, onde à cornija falta amparo; Dali cair se pode e o risco eu vejo. As almas do outro lado eram; reparo Que dos olhos a hórrida costura Provoca pranto copioso e amaro. Voltei-me e disse: — Ó almas, que a ventura De ver tereis ao certo o excelso Lume; De que somente o vosso anelo cura, Dissolva a Graça em vós todo o negrume Da consciência e nela manar faça Da mente o rio em límpido corrume! Concedei-me o que mais me satisfaça: Dizei-me qual de vós latina há sido; De eu sabê-lo algum bem talvez lhe nasça. — — Por pátria, irmão, só hemos conhecido A cidade de Deus: dizer quiseste Peregrina na Itália haja vivido. — De mim remota a voz parece deste, Que assim disse; e portanto, passo avante Por saber certo a quem atenção preste. E uma senhora entre as mais vi, que, distante, Aguardava-me. E como eu a distinguia? Qual cego, alçava o mento pra diante. — Tu, que para subir penas — dizia — Quem foste, onde nasceste diz: te imploro, Se é tua voz que, há pouco, respondia. — Fui de Siena — tornou — com este choro Os graves erros de perversa vida, E a Deus que se nos dê, clemente, exoro. Chamei-me Sápia, mas não fui sabida. Mais deleite me deu o alheio dano Do que a dita a mim própria concedida. E por que não presumas que te engano, Se fui louca verás pelo que digo. Já no declínio do viver humano Eu era, quando a rebater o inimigo Em Colle os meus patrícios campearam; A Deus roguei que lhes não fosse amigo. Destroçados, à fuga se lançaram, E a mim, que estava aquele transe vendo, Indizíveis prazeres me tornaram, Em modo, que atrevida, olhos erguendo, — Não mais Deus tenho! — contra o céu gritava Qual melro, instantes de bonança tendo. Com Deus quis paz, mas quando já tocava Da vida o termo; e ainda não pudera A dívida solver, que me onerava, Se Pedro Pettinanho não se houvera, Nas santas operações de mim lembrado: Em prol meu, caridade o comovera. Mas quem és, que nos tens interrogado, Que estando, creio, de olhos não tolhidos E respirando indagas nosso estado? — — Olhos — disse — terei também cerzidos, Porém por pouco tempo; que da inveja No mundo hão sido rara vez torcidos, Maior receio o peito me dardeja De outro tormento; e tanto me angustia, Que o seu fardo a sentir cuido já steja. — — Mas quem ao monte — me tornou — te guia, Pois de voltar ao mundo tens certeza? — — Quem tenho ao lado e voz não pronuncia. Inda vivo; e, pois fala com franqueza, Alma eleita, se queres que os pés mova Em prol teu lá na terra com presteza. — — O que dizendo estás, cousa é tão nova Que por mim rogues fervorosa peço, Pois da divina dileção dás prova. E pelo que te merecer mais preço Suplico-te: ao pisar terra toscana Ao meu nome entre os meus aviva o apreço. Terás de vê-los entre a gente insana, Que espera em Talamone, mas como antes, Quando buscava as águas do Diana: Mor engano há de ser dos almirantes. —
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