"Artur de Azevedo"@pt . "O Xisto era o carioca mais feio que ainda se viu. N\u00E3o tinha defeitos f\u00EDsicos, n\u00E3o o deformavam aleij\u00F5es nem protuber\u00E2ncias: era naturalmente feio, de uma fealdade leg\u00EDtima, resultante do conjunto infeliz de todas as partes do corpo, e n\u00E3o de quaisquer incidentes ou particularidades. Tinha os olhos esbugalhados, o nariz chato, o cabelo espeta-goiaba, a boca rasgada quase at\u00E9 as orelhas, que eram enormes. Quando abria as mand\u00EDbulas para falar, mostrava as gengivas em que se incrustavam alguns fragmentos negros da dentadura de outrora. Imagem:Separator.jpg Imagem:Separator.jpg Imagem:Separator.jpg"@pt . . "X e W"@pt . . . . "X e W"@pt . "O Xisto era o carioca mais feio que ainda se viu. N\u00E3o tinha defeitos f\u00EDsicos, n\u00E3o o deformavam aleij\u00F5es nem protuber\u00E2ncias: era naturalmente feio, de uma fealdade leg\u00EDtima, resultante do conjunto infeliz de todas as partes do corpo, e n\u00E3o de quaisquer incidentes ou particularidades. Tinha os olhos esbugalhados, o nariz chato, o cabelo espeta-goiaba, a boca rasgada quase at\u00E9 as orelhas, que eram enormes. Quando abria as mand\u00EDbulas para falar, mostrava as gengivas em que se incrustavam alguns fragmentos negros da dentadura de outrora. Vestia-se mal. N\u00E3o havia roupa que lhe assentasse, - e n\u00E3o andava sem bambolear ridiculamente os quadris desengon\u00E7ados. As mulheres bonitas fugiam dele como o diabo da cruz, e era isto o que mais o desconsolava. As feias, levadas n\u00E3o pelo amor mas por uma esp\u00E9cie de solidariedade, n\u00E3o o repeliam; mas o pobre Xisto n\u00E3o as podia aturar. Era feio, muito feio, mas tinha o sentimento do belo, e sonhava com mulheres divinas, excepcionalmente formosas. Imagem:Separator.jpg Defronte da casa dele morava uma vi\u00FAva de trinta anos, lind\u00EDssima, de quem se dizia mal. Havia na vizinhan\u00E7a quem afirmasse que ela sofria da mesma doen\u00E7a de Messalina e Catarina II; mas isso bem podia ser cal\u00FAnia. Xisto, coitado, adorava em sil\u00EAncio a encantadora vizinha, sem que t\u00E3o desairosa reputa\u00E7\u00E3o fizesse mossa nos seus sentimentos. N\u00E3o podia v\u00EA-la \u00E0 janela sem fr\u00EAmitos de amor; considerava-se, por\u00E9m, como Ruy Blas, insignificante minhoca apaixonada por uma estrela, e n\u00E3o ousava dizer nem a si pr\u00F3prio que a amava. Imagem:Separator.jpg Imagine-se que sensa\u00E7\u00E3o, que sobressalto, quando certa manh\u00E3, chegando \u00E0 janela, e olhando para a vi\u00FAva, o Xisto foi recebido com um sorriso inef\u00E1vel. Ele sorriu tamb\u00E9m, contraindo os l\u00E1bios para n\u00E3o mostrar os dentes e as gengivas, e este esfor\u00E7o muscular produziu uma careta medonha. A vi\u00FAva n\u00E3o se mostrou horrorizada. Retirou-se da janela, e, colocando-se no meio da sala, de modo que n\u00E3o pudesse ser vista sen\u00E3o pelo vizinho, mostrou-lhe um papel que tinha na m\u00E3o. Ele estupefato, saiu tamb\u00E9m da janela, e bateu no peito, perguntando, por m\u00EDmica, se era para si aquele bilhete. A vi\u00FAva respondeu afirmativamente, e, voltando para a janela, fez do papel uma bola, e atirou-a \u00E0 rua, tendo o cuidado de, com um volver d'olhos, recomendar ao Xisto que a apanhasse. O mo\u00E7o desceu \u00E0 rua, olhou para todos os lados, e verificando que ningu\u00E9m o via, apanhou a bola, voltou para casa, e leu sofregamente o seguinte: \"Hoje, \u00E0 meia-noite, espero-o em minha casa. A porta estar\u00E1 apenas encostada. Tenha a maior cautela para que ningu\u00E9m o veja entrar.\" O que durante esse dia se passou na alma e no c\u00E9rebro do Xisto, daria para um longo cap\u00EDtulo de romance. O pobre diabo perdia-se em suposi\u00E7\u00F5es e conjecturas, sem acreditar que se tratasse de uma aventura amorosa. Entretanto, barbeou-se, aparou o cabelo, meteu-se num banho perfumado, vestiu roupa nova, e esperou, febricitante, a meia-noite, contando os minutos, que lhe pareciam s\u00E9culos. Imagem:Separator.jpg Quando, \u00E0 primeira badalada da meia-noite, ele empurrou a porta e entrou no corredor da vi\u00FAva, esta, que o esperava, disse-lhe \u00E0 meia voz: \u2014 Entre para o meu quarto.. - devagarinho para n\u00E3o despertar os criados... Pie obedeceu tr\u00EAmulo e ofegante. \u2014 Disseram-me ontem que o senhor chama-se Xisto; \u00E9 verdade? \u2014 Sim, senhora. \u2014 Escreve o seu nome com X? \u2014 Naturalmente. \u2014 Bom. Imagem:Separator.jpg Na manh\u00E3 seguinte, o Xisto abriu a janela na esperan\u00E7a de ver a sua amante, mas nem nesse dia, nem nos imediatos lhe p\u00F4s a vista em cima. Afinal, depois de uma semana inteira, conseguiu v\u00EA-la; mas a vi\u00FAva olhou para ele com indiferen\u00E7a, como se o n\u00E3o conhecesse; nem sequer o cumprimentou. O m\u00EDsero ficou magoado, e muito convencido de que, sem saber como, susceptibilizara a vi\u00FAva; entretanto, n\u00E3o teve anseios nem saudades, porque da singular entrevista lhe ficara uma impress\u00E3o muito desagrad\u00E1vel, e a vizinha perdera consideravelmente na sua estima. Ele tinha estado, n\u00E3o com uma mulher, mas com um aut\u00F4mato, uma boneca mec\u00E2nica, t\u00E3o fria, t\u00E3o inconsciente lhe parecera. A vis\u00EDvel repugn\u00E2ncia com que ela se esquivara a um beijo na despedida e a insist\u00EAncia com que lhe pedira se fosse embora, depois de uma entrevista que n\u00E3o durara mais de quinze minutos, abateram cinq\u00FCenta por cento do seu entusiasmo. E nunca mais o Xisto se encontrou a s\u00F3s com aquela mulher, aquela esfinge, que fora sua, absolutamente sua durante um quarto de hora! Imagem:Separator.jpg Um ano depois, ele teve a explica\u00E7\u00E3o de tudo, e quem lha deu foi o Wladimir, seu amigo intimo e colega de reparti\u00E7\u00E3o, que lhe contou o seguinte: \"Achando-me num bonde de Botafogo, sentado junto a uma senhora desconhecida, esta, ouvindo pronunciar o meu nome por um amigo que se apeara, imediatamente me perguntou: \u2014 O senhor chama-se Wladimir? \u2014 Sim, senhora. \u2014 Escreve o seu nome com W? \u2014 Sim. \u2014 \u00C9 um bonito nome! \u2014 Acha? \u2014 Diz muito bem com a pessoa. \u2014 Favores seus. \u2014 \u00C9 solteiro? \u2014 Sim, senhora. \u2014 Aceita uma ch\u00E1vena de ch\u00E1 em nossa casa? \u2014 Com mil vontades. \u2014 Nesse caso, espero-o hoje \u00E0 meia-noite. E disse-me onde morava. Vi ent\u00E3o que se tratava do teu aut\u00F4mato. Fiz-lhe ver que a meia-noite era uma hora muito esquisita para tomar ch\u00E1 em casa de uma senhora, ao que ela respondeu com um delicioso sorriso: \u2014 Pois tomar\u00E1 outra coisa. Fui pontual. Reproduziu-se a mesma cena que se passou contigo, tal qual ma contaste. Mas diante do seu automatismo n\u00E3o tive a tua passividade: revoltei-me, fingi-me deveras zangado, e ameacei-a com um esc\u00E2ndalo inaudito, \u00E0quela hora, se me n\u00E3o explicasse a raz\u00E3o por que te dera a ti uma entrevista, e outra a mim, sem nos amar, sem sequer nos conhecer. A explica\u00E7\u00E3o foi dif\u00EDcil, mas arranquei-lha! \u2014 E ent\u00E3o? perguntou o Xisto, mostrando as gengivas. Que te disse aquela c\u00EDnica? \u2014 N\u00E3o \u00E9 c\u00EDnica, \u00E9 doida. \u2014 Deveras? \u2014 Sim, \u00E9 um caso patol\u00F3gico. Imagina que ela organizou um \u00EDndice alfab\u00E9tico de todos os seus amantes, e estava aflita porque lhe faltavam o X e o W. O X foste tu; o W fui eu! \u2014 Ora esta! \u2014 Ainda lhe faltam o K e o Y, mas creio que n\u00E3o os arranjar\u00E1, a menos que recorra ao estrangeiro. \u2014 S\u00F3 assim poderia eu, com a cara que tenho.. \u2014 Ela encontrou em ti o X que procurava. Se fosses um monstro, seria a mesma coisa. V\u00EA tu aonde pode conduzir a mania de colecionar! (Correio da Manh\u00E3, 14 de junho de 1903)"@pt .