. . "D\u00E9bil entanto a luz sobre o horizonte Os seus tr\u00EAmulos raios apagava, E desde o ocidental imenso monte A noite pelas terras se espalhava. Morfeu, deixando os antros de Aqueronte, No seio dos mortais se derramava. Mas da b\u00E1rbara gente que fugia, S\u00F3 se entregava ao sono a que morria. II Fatigado Diogo ao lado estava E a bela esposa numa gr\u00E3-floresta; Nem ao preciso sono lugar dava Na aten\u00E7\u00E3o de a guardar da gente infesta. Um de outro os sucessos escutava, Nutrindo em novo fogo a chama honesta; Que, depois de um triunfo do inimigo, Faz-se doce a mem\u00F3ria do perigo. III Ao resplendor da lua que sa\u00EDa, Misturava-se o horror com a piedade, Porque em lagos de sangue s\u00F3 se via Sanguinolenta, horr\u00EDvel mortandade. O vale igual ao monte parecia, E, do estrago na vasta imensidade, O outeiro estava, donde foi o assalto, Com montes de cad\u00E1veres mais alto. IV N\u00E3o p\u00F4de v\u00EA-lo a bela americana, Sem que a tocasse um triste sentimento; E, ou fosse condi\u00E7\u00E3o da gente humana, Ou do seu sexo um pr\u00F3prio movimento, Chorou piedosa a sorte desumana Dos que, apartados do terreno assento, Jaziam, como ouvira de Diogo, Nas labaredas de um eterno fogo. V \"E como (compassiva disse) \u00E9 cr\u00EDvel Que o Deus, como me pintas, bom e am\u00E1vel Sabendo o que h\u00E1 de ser e o que \u00E9 poss\u00EDvel, Nos crie para fim t\u00E3o miser\u00E1vel? Antevendo um sucesso t\u00E3o terr\u00EDvel, N\u00E3o parece crueldade inexcus\u00E1vel Dar-lhe o ser, dar-lhe a vida, dar-lhe a mente, Para v\u00EA-los arder eternamente? VI Quantos criar pudera que o servissem, Deixando de criar quem o agravasse, Onde todos a v\u00EA-lo ao c\u00E9u subissem, E as obras que produz todas salvasse? Nossos pais, se dos filhos tal previssem, Quanto fora cruel quem os gerasse! E creremos da excelsa gr\u00E3-bondade Que ceda a nossos pais na humanidade?\" VII \"Segredos s\u00E3o (diz Diogo) da inscrut\u00E1vel Majestade de Deus: que saberemos Do seu modo de obrar sempre inef\u00E1vel, Se o que somos e obramos n\u00E3o sabemos? Faltando-nos raz\u00E3o clara e prov\u00E1vel Nos conselhos de Deus, que ocultos vemos, E bem que toda a d\u00FAvida se acabe, Porque ele pode mais, do que o homem sabe. VIII \"Mas, se h\u00E1 lugar \u00E0 humana conjetura Dos poss\u00EDveis na longa imensidade, N\u00E3o se podia achar uma criatura, Que goze de impec\u00E1vel liberdade. Uma firme inoc\u00EAncia \u00E9 gra\u00E7a pura, \u00C9 merc\u00EA liberal da Divindade, E quem entanto a perguntar se atreve, Por que lha n\u00E3o quis dar quem lha n\u00E3o deve? IX Desde a origem da imensa eternidade, Que tudo sem princ\u00EDpio ordena e rege, Devemos presumir da Divindade Que onde o \u00F3timo encontra em tudo o elege. E, sendo em n\u00F3s t\u00E3o grande a iniq\u00FCidade, N\u00E3o temos coisa que a qualquer se inveje, Onde se os mais poss\u00EDveis vendo fores, N\u00F3s fomos os eleitos por melhores.\" X Embora seja assim (disse a donzela); Mas que culpa t\u00EAm estes, que o ignoravam? N\u00E3o cuida acaso Deus, ou pouco zela As almas, que entre n\u00F3s se condenavam? E sen\u00E3o, por que causa aos mais revela As doutrinas que aos nossos se ocultavam? Distava mais do c\u00E9u a nossa gente, Por que medeia o mar d'Este a Poente?\" XI Tornai a culpa a v\u00F3s, e a v\u00F3s somente (O her\u00F3i responde assim). Se com estudo Procurais sobre a terra o bem presente, Por que n\u00E3o procurais o autor de tudo? Para o mais tendes lume, instinto e mente; Somente contra Deus buscais o escudo Em a vossa ignor\u00E2ncia \u00E0 brutal culpa! Essa ignor\u00E2ncia \u00E9 crime e n\u00E3o desculpa.\" XII Por\u00E9m j\u00E1 da fadiga desvelada Cerrava Paraguassu seus olhos claros, Tendo-a Diogo na f\u00E9 mais confirmada, Com responder prudente aos seus reparos, Enquanto a bruta gente aprisionada, Mostrando-se da vida nada avaros, Dan\u00E7am e bebem com trip\u00FAdio forte, E esperam, com a boda, a cruel morte. XIII Gupeva triunfante na gr\u00E3-taba O infausto prisioneiro \u00E0 morte guia, E, antevendo que a vida se lhe acaba, A mulher cada um lhe oferecia: Trazem-lhe o peixe, as carnes, a mangaba, Brindando-lhe o licor, que a ta\u00E7a enchia, At\u00E9 que quando menos se recorda, Dois selvagens o prendem numa corda. XIV Soltas as m\u00E3os lhe ficam, que maneia, Nem o tem mais que em meio da cintura A soga de algod\u00E3o, como cadeia, Que de uma parte e de outra os assegura. Qual leoa feroz na maura areia, Quando o la\u00E7o no ventre a tem segura, Toda da fronte a cauda se retorce, E ruge e vibra a garra, e o corpo torce. XV Muitos ent\u00E3o da furibunda gente Dizem-lhe inj\u00FArias mil, com mil insultos Que ele se esfor\u00E7a a rebater valente, Sem que receie os b\u00E1rbaros tumultos; Algum ali chegando ao paciente (Que tem por coisa vil morrer inultos) D\u00E1-lhe um cesto de pedras recalcado, Com que, atirando aos mais, morra vingado. XVI Embiara e Mexira, dois possantes Mancebos caet\u00E9s de um parto vindos, Que Ainub\u00E1 dera \u00E0 luz t\u00E3o semelhantes, Como tenros na idade, e em gesto lindos, Muitas donzelas, que os amaram dantes, Os belos dias seus choravam findos. Mitigando o desgosto de perd\u00EA-los Com a inten\u00E7\u00E3o que tinham de com\u00EA-los. XVII Estes na corda t\u00EAm os da Bahia, Dispostos a morrer no torpe abuso De celebrar com sangue o fausto dia Das v\u00EDtimas triunfais ao p\u00E1trio uso. Embiara, que com arte a pedra envia, Muitas no povo disparou confuso, E, apesar dos escudos, que p\u00F5e diante, Alguns feriu da turba circunstante. XVIII Uma gr\u00E3-pedra ao ar nas m\u00E3os levanta, E, erguendo os bra\u00E7os sobre a fronte atira; Lan\u00E7a por terra alguns, outros quebranta, E esmaga com o peso o gr\u00E3o-Tapira. Outras tr\u00EAs arrojou com f\u00FAria tanta, Que, se de atorno a gente n\u00E3o fugira, Com os tiros, que o bravo lhe dispara, Em vingan\u00E7a cruel no ch\u00E3o ficara. XIX Mexira noutro lado era detido Com o duro cord\u00E3o; por\u00E9m, sem medo, Ao b\u00E1rbaro Piri, que o tem cingido, Esmigalha a cabe\u00E7a cum penedo. Foge o povo com pedras rebatido; Mas Mexira, na corda atado e quedo, Com tr\u00EAs peda\u00E7os de uma ingente roca Uns derriba no ch\u00E3o e outros provoca. XX Sai ent\u00E3o Tojucane em campo ardente, E ao som dos seus marraques aplaudido, Um cinto tem de plumas sobre a frente, Manto ao ombro de pluma entretecido; Tinto de negro todo, a cor somente Traz natural no vulto enfurecido; E, por meter no horror maior respeito, Com o bei\u00E7o inferior varria o peito. XXI A cara, peito, bra\u00E7os (vista horrenda!) Traz com golpes cru\u00E9is acutilados, Golpes com que o valor se recomenda, Feitos da pr\u00F3pria m\u00E3o com talhos dados, Onde, se a chaga apodreceu tremenda, Em meio do asco e horror desfigurados, Vendo a gente brutal que um n\u00E3o se d\u00F3i, Este ent\u00E3o (que ignor\u00E2ncia!) \u00E9 o seu her\u00F3i. XXII Desta arte Tojucane armado vinha, Posto ao v\u00EA-lo em sil\u00EAncio, em pasmo tudo; Atira-lhe Embiara (que ainda o tinha) Um penedo, que rompe o forte escudo: O tacape ele ent\u00E3o desembainha, Que de plumas ornou com belo estudo, E, encostando-se ousado \u00E0 longa corda, Aos dois fortes irm\u00E3os falando aborda. XXIII \"N\u00E3o sois v\u00F3s (disse o b\u00E1rbaro), traidores, Os que a matar-nos com furor viestes, E sem respeito aos m\u00EDseros clamores Os nossos tenros filhos j\u00E1 comestes?\" \"Somos (disseram) n\u00F3s; os teus furores Sem o la\u00E7o, em que agora nos prendestes, Soub\u00E9ramos domar. E assim cativo, A ver-me solto, te comera vivo.\" XXIV \"Vivo, nem morto a mim me n\u00E3o tocaras Porque, se bra\u00E7o a bra\u00E7o te mediras, Ou im\u00F3vel de espanto em p\u00E9 ficaras, Ou de um s\u00F3 golpe (diz) no ch\u00E3o ca\u00EDras.\" \"Verias bem, se agora nos soltaras, Como logo (responde) me fugiras, N\u00E3o queira de valente ser louvado, Quem pretende triunfar de um desarmado.\" XXV \"Esse v\u00E3o pensamento melhor fora Que o tiveras, como eu, no campo, bravo; Mas tu (diz Tojucane) na mesma hora Te viste combatido e foste escravo. Como te atreves a gloriar-te agora Com vil jact\u00E2ncia, com soberbo gavo? A quem de resistir falta a const\u00E2ncia V\u00E3o fica mais lugar para a jact\u00E2ncia.\" XXVI Dizendo assim, na fronte a espada ingente Deixa o fero cair com golpe horrendo, Cai por terra Embiara ainda vivente; Mexira morto j\u00E1, por\u00E9m tremendo. Mordeu aquele o ch\u00E3o com f\u00FAria ardente, E em cima o matador co p\u00E9 batendo: \"Morre, soberbo, diz, e ser\u00E1s vasto Para nosso trof\u00E9u vingan\u00E7a e pasto.\" XXVII Qual se diz que a Tifeu subjuga um monte, Tal a planta cruel Embiara oprime; E como a cobra faz-se junto \u00E0 fonte, Toda em n\u00F3s quebrantada se comprime, Retorcendo em mil voltas cauda e fronte, Que ergue, vibrando a l\u00EDngua, no ar sublime, Tal o infeliz morrendo em voltas anda, E o esp\u00EDrito exalado \u00E0s sombras manda. XXVIII Chega \u00E0s cruentas v\u00EDtimas chorosa Fem\u00EDnea tropa, que com dor lamenta; E, urlando todas com a voz maviosa, Tudo vai repetindo a plebe atenta. Depois daquela l\u00E1stima enganosa, Qualquer junto aos cad\u00E1veres se assenta, E v\u00E3o talhando p\u00E9s, cabe\u00E7as, bra\u00E7os, E as v\u00EDtimas fazendo em mil peda\u00E7os. XXIX Chamam moqu\u00E9m as carnes, que se cobrem, E a fogo lento sepultadas assam; Tudo em cima com terra e rama encobrem, Onde o fogo depois com lenha fa\u00E7am. Entanto as voltam, cobrem e descobrem, At\u00E9 que do calor se lhe repassam; Detest\u00E1vel empresa, que escondiam Da indigna\u00E7\u00E3o de Diogo, a quem temiam. XXX Foi avisado o her\u00F3i do ato execrando Horr\u00EDvel pasto de na\u00E7\u00E3o perversa. E a maneira oportuna meditando Da b\u00E1rbara fun\u00E7\u00E3o deixar dispersa. Mil fogos de artif\u00EDcio ia espalhando, De horr\u00EDvel forma, e de inven\u00E7\u00E3o diversa. Treme a vil turba, e sem que a mais se arroje, Deixa o pasto cruel e ao mato foge. XXXI Confusa a infame gente do sucesso, Do gr\u00E3o Caramuru temia a vista. Foge Gupeva, de terror opresso, Nem sabe, em que maneira ao mal resista; Mas o novo pavor na gente impresso Mitiga Paraguassu, que o dano avista, Se, como teme, o povo de espantado, O terreno deixasse abandonado. XXXII Jararaca entretanto conduzido Dos bravos Caet\u00E9s \u00E0 taba nota, Diligente curava o p\u00E9 ferido, E em reparar cuidava a gr\u00E3-derrota. E, havendo no conselho a liga unido, As for\u00E7as representa, os meios nota, E nigromante cr\u00EA por perda tanta O gr\u00E3o-Caramuru, que o fogo encanta. XXXIII J\u00E1 na gr\u00E3-taba os b\u00E1rbaros se ajuntam, Onde contra Diogo arte se estude, E por magos famosos, que perguntam, Recorriam de encantos \u00E0 virtude: Os nigromantes v\u00EAem que os corpos untam, E nos sussurros do seu canto rude Esperam que tamb\u00E9m ao forte Diogo, Matando privem do temido fogo. XXXIV Um deles, que por s\u00E1bio se acredita, N\u00E3o h\u00E1 (disse) quem possa a ardente fr\u00E1goa Apagar no trov\u00E3o, que o raio excita, Lastimosa ocasi\u00E3o da nossa m\u00E1goa: Que se ant\u00EDdoto ao fogo se medita Mais natural n\u00E3o h\u00E1 que lan\u00E7ar-lhe \u00E1gua: Dentro n'\u00E1gua se apaga o fogo ardente: E este \u00E9 o meio, que ocorre de presente. XXXV Contra as vossas canoas n\u00E3o se atreve O filho do trov\u00E3o, se desce ao porto; Vos o vereis sem for\u00E7a em tempo breve Sair qual j\u00E1 saiu das \u00E1guas morto: Ningu\u00E9m h\u00E1 que n\u00E3o saiba como esteve, Quando o encontramos naufrago no porto: Nem usou do trov\u00E3o, que espanta em terra, Nem fez com fogo n'\u00E1gua a horr\u00EDvel guerra. XXXVI S\u00E3o n\u2019\u00E1gua, terra, e mar mui diferentes Os anhang\u00E1s, que reinam divididos; Uns, que s\u00F3 no ar e fogo s\u00E3o potentes, Causam ventos, trov\u00F5es, raios temidos; O terremoto e pestes sobre as gentes Movem outros na terra conhecidos: Este por\u00E9m, que ao estrangeiro acode, N'\u00E1gua n\u00E3o poder\u00E1, se em fogo pode. XXXVII Parece \u00E0 rude gente este discurso, Segundo os seus princ\u00EDpios concludente; E ouvido com aplauso no concurso, Votam na execu\u00E7\u00E3o concordemente. Toma a guerra por tanto um novo curso, E ao mar se envia a belicosa gente; Nem capit\u00E3o h\u00E1 mais, nem h\u00E1 pessoa, Que n\u00E3o embarque em r\u00E1pida canoa. XXXVIII Chamam canoa os nossos nesses mares Batel de um vasto lenho constru\u00EDdo Que escavado no meio, por dez pares De remos, ou de mais voa impelido; Com tropas e petrechos militares, Vai de impulso t\u00E3o r\u00E1pido movido, Que ou fuja da batalha, ou a acometa, Parece mais ligeiro que uma seta. XXXIX Concorrendo as na\u00E7\u00F5es do sert\u00E3o junto, Trezentas, ou mais, arma Jararaca; E, tendo escolha, porque o povo \u00E9 muito, Deixa em terra das gentes a mais fraca. E sendo da Bahia t\u00E3o conjunto O ilh\u00E9u de Taparica, este se ataca, Na esperan\u00E7a que Diogo acudiria, Vendo o sogro em perigo, que o regia. XL Repousava sem susto Taparica, E, confiado em Diogo e na vit\u00F3ria, Gozava de uma paz tranq\u00FCila e rica, Depois que a guerra terminou com gl\u00F3ria; E quando a rouca in\u00FAbia arma publica, T\u00E3o longe tinha as armas da mem\u00F3ria, Que, ignorando em sossego os seus perigos, Nas m\u00E3os se foi meter dos inimigos. XLI Prendem o inerme chefe de improviso, Acometendo a taba descuidada; A chama e fumo d\u00E3o infausto aviso Ao bom Diogo da b\u00E1rbara assaltada. Nem impulso maior lhe era preciso, Vendo a ilha dos b\u00E1rbaros tomada: Ocupa em pressa as armas e as canoas, Sem mais que Paraguassu com cem pessoas. XLII Vinte bombas de p\u00F3lvora tem cheias, De que uma parte j\u00E1 das naus salvara; Quatro f\u00E9rreos canh\u00F5es, que entre as areias Por nadadores bons do mar tirara; Metralhas, palanquetas e cadeias, Pistolas e fuzis, que preparara; Canoas tr\u00EAs de p\u00F3lvora e resina, Que lan\u00E7ar nas contr\u00E1rias determina. XLIII Forma-se em meia lua a vasta armada, Cuidando de encerrar Diogo em meio, E com nuvem de frechas condensada A \u00E1urea luz do sol a impedir veio. Firme estava do her\u00F3i a turba irada, E, coalhando-se o mar de lenhos cheio, Retumba o eco na Bahia toda Pela gente brutal que urlava em roda. XLIV At\u00E9 que a tiro os v\u00EA do bronze horrendo E, sem mais esperar, dispara fogo, Que tudo com metralha ia varrendo, E a pique dez canoas meteu logo. Saltam muitos de horror no mar, tremendo; Alguns, deixando o remo, as m\u00E3os de Diogo Com bombas ardem, que feroz lhe lan\u00E7a, Outros a espada de vizinho alcan\u00E7a. XLV Confusas entre si v\u00E3o flutuando As canoas, que a gente n\u00E3o regia, E um vai sob'outras embarrando Na desordem que todas confundia. As tr\u00EAs incendi\u00E1rias arrojando, Um dil\u00FAvio de fogo n\u2019\u00E1gua ardia, Com tal fuma\u00E7a nas ardentes fr\u00E1goas, Que, cobrindo-se o ar, fervem as \u00E1guas. XLVI Qual, se na selva densa o fogo ateia, Em colunas de fumo voa a chama, E a labareda, que pelo ar ondeia, Traspassando se vai de rama em rama, Tal na ba\u00EDa de canoas cheia Um dil\u00FAvio de fogo se derrama; E o b\u00E1rbaro, de horror, de espanto e m\u00E1goa, Foge a morte do fogo e escolhe a d\u2019\u00E1gua. XLVII Jararaca entretanto em terra estava, Donde prendera o incauto Taparica, E raivoso das praias observava Toda a frota naval, que em cinzas fica. Foge dispersa a tropa que levava, E, logo que a vit\u00F3ria se publica, Toda a ilha, que as armas arrebata, O t\u00EDmido Caet\u00E9 subjuga, ou mata. XLVIII Nem j\u00E1 dos inimigos se descobre Uma canoa s\u00F3 no lago ingente, E o mar de mil cad\u00E1veres se cobre, Sem que saiba aonde fuja a infeliz gente, Que Gupeva entretanto a praia encobre Embara\u00E7ando a fuga ao continente; Grande parte desde a \u00E1gua o bra\u00E7o estende E a liberdade com a vida rende. XLIX N\u00E3o assim Jararaca, que na praia P\u00F5e por escudo o infausto Taparica; E amea\u00E7a mat\u00E1-lo, quando saia Em terra Diogo, que suspenso fica. V\u00EA o transe a filha e sobre as m\u00E3os desmaia Do caro esposo, e pelo pai suplica; E v\u00EA-se Diogo em lance embara\u00E7ado, Sem saber como salve o desgra\u00E7ado. L Atirar-lhe quisera; mas duvida, Na inten\u00E7\u00E3o de mat\u00E1-lo vacilante, Vendo do sogro amea\u00E7ada a vida, E quase sem alento a esposa amante: Tr\u00EAs vezes p\u00F4s a mira dirigida, Tr\u00EAs vezes se deteve a m\u00E3o constante; E em terra e mar a um tempo a a\u00E7\u00E3o retarda Jararaca ao bast\u00E3o, ele \u00E0 espingarda. LI \"Que mais espero (diz)? feri-lo \u00E9 incerto; Mas \u00E9 claro na m\u00E3o desse inimigo Que em qualquer caso enfim o dano \u00E9 certo, E cresce na tardan\u00E7a o seu perigo.\" Disse e toma por alvo descoberto A fronte do contr\u00E1rio, e neste artigo Dispara o tiro e a bala lhe atravessa De uma parte \u00E0 outra parte da cabe\u00E7a. LII Cai Jararaca em terra ao mesmo instante, Qual penhasco que do alto se derroca, Quando o raio, que o arroja fulminante, Desde clima o arrancou da excelsa roca. Num rio a terra se banhou fumante Do negro sangue, donde pondo a boca Morde raivoso a areia em que ca\u00EDra, E o torpe alento com a vida expira. LIII J\u00E1 neste tempo se encontrava amigo Taparica e Diogo em terno abra\u00E7o, Vendo por terra o p\u00E9rfido inimigo, Que, temendo, ocupava um vasto espa\u00E7o. Paraguassu, que aflita do perigo, Sem sentido ficou no horr\u00EDvel passo, Torna a si do desmaio e v\u00EA piedoso O pai, que a tem nos bra\u00E7os, com o esposo. LIV Alegre vem do oposto continente Em canoas Gupeva e Taparica, Congratular-se com o her\u00F3i valente Que, morto Jararaca, em calma fica. Pasma de ver o estrago a insana gente, Que os arcos abatendo a paz suplica, E, respeitando a superior pot\u00EAncia, Compensavam a paz com a obedi\u00EAncia. LV Chegaram do sert\u00E3o dez mensageiros Em nome das na\u00E7\u00F5es que em guerra andavam, Confirmando com pactos verdadeiros A inteira sujei\u00E7\u00E3o que ao luso davam. V\u00EAm entre eles os pr\u00EDncipes primeiros, E, com os ritos que na p\u00E1tria usavam, Pr\u00EDncipe aclamam com festivo modo O filho do trov\u00E3o do sert\u00E3o todo. LVI Nem duvidou Diogo, imaginando Quanto domar importa a gente bruta, Aceitar das na\u00E7\u00F5es o excelso mando, E consigo prudente os fins reputa. Ouve-se em nome seu publico bando, Que a b\u00E1rbara caterva humilde escuta, Em que todo o homic\u00EDdio se pro\u00EDbe, E com pena de morte a culpa inibe. LVII Julga, por\u00E9m, ao ver inveterada A b\u00E1rbara paix\u00E3o na gente cega, Que a grave pena ao crime decretada Conv\u00E9m dissimular, se ao caso chega. A tudo a gente b\u00E1rbara humilhada S\u00F3 na gula cruel a emenda nega, Por b\u00E1rbara vingan\u00E7a carniceira, Que tanto pode a educa\u00E7\u00E3o primeira. LVIII N\u00E3o tardou logo a ocasi\u00E3o de v\u00EA-lo, Porque, apenas deixara a companhia, O pr\u00F3prio Taparica sem tem\u00EA-lo Ao convite cruel se prevenia. Bambu, que fora ao ponto de prend\u00EA-lo, Quem lhe lan\u00E7ara as m\u00E3os com ousadia, Preso em canoa o r\u00E9gulo conserva, Por pasto infando \u00E0 b\u00E1rbara caterva. LIX Estava o desditoso encadeado, E exposto a mil insetos que o mordiam; Nem se lhe via o corpo ensang\u00FCentado, Que todos os maribondos lhe cobriam. Corria o negro sangue derramado Das cru\u00E9is picaduras que lhe abriam; E ele, im\u00F3vel entanto em tosco assento, Parecia insens\u00EDvel no tormento. LX Vendo Diogo o infeliz quanto padece No modo de penar mais desumano, Maior a toler\u00E2ncia lhe parece Do que possa caber num peito humano. E, como autor do crime reconhece Do cruel sogro o cora\u00E7\u00E3o tirano, Oferece a Bambu, que a morte amea\u00E7a, Socorro amigo na cruel desgra\u00E7a. LXI \"Perdes comigo o tempo (disse o fero); Ao que v\u00EAs, e ainda a mais vivo disposto. A liberdade, que me d\u00E1s, n\u00E3o quero, E da dor, que tolero, fa\u00E7o gosto. Assim vingar-me do inimigo espero.\" Disse; e, sem se mudar do antigo posto, As picadas cru\u00E9is t\u00E3o firme atura, Como se penha fora, ou rocha dura. LXII \"Se o motivo, diz Diogo, por que temes, \u00C9 porque escravo padecer receias, E tens por menos mal este, em que gemes, Do que uma vida em m\u00EDseras cadeias, Dep\u00F5e o susto, que sem causa tremes; Penhor te posso dar, por onde creias, Depondo a obstina\u00E7\u00E3o do torpe medo, Que a vida e liberdade te concedo.\" LXIII Aqui da fronte o b\u00E1rbaro desvia Dos insetos coa m\u00E3o a espessa banda; E a Diogo, que assim se condo\u00EDa, Um sorriso em resposta alegre manda. \"De que te admiras tu? Que serviria Dar ao vil corpo condi\u00E7\u00E3o mais branda? Corpo meu n\u00E3o \u00E9 j\u00E1; se anda comigo, Ele \u00E9 corpo em verdade do inimigo. LXIV O esp\u00EDrito, a raz\u00E3o, o pensamento Sou eu e nada mais; a carne imunda Forma-se cada dia do alimento, E faz a nutri\u00E7\u00E3o, que se confunda. V\u00EAs tu a carne aqui, que mal sustento? N\u00E3o a reputes minha: s\u00F3 se funda Na que tenho comido aos advers\u00E1rios; Donde minha n\u00E3o \u00E9, mas dos contr\u00E1rios. LXV Da carne me pastei continuamente De seus filhos e pai; dela \u00E9 composto Este corpo, que animo de presente. Por isso dos tormentos fa\u00E7o gosto. E, quando maior pena a carne sente, Ent\u00E3o mais me consolo, do suposto Do me ver no inimigo bem vingado, Neste corpo, que \u00E9 seu, t\u00E3o mal tratado.\" LXVI Imposs\u00EDvel parece ao s\u00E1bio her\u00F3i O que v\u00EA e o que escuta, e que assim possa, Quando a carne mortal tanto se d\u00F3i, Vencer-se a dor da fantasia nossa. Magoado interiormente se cond\u00F3i De ver que no infeliz nada faz mossa, Mostrando na brutal rara const\u00E2ncia Com tal valor t\u00E3o b\u00E1rbara ignor\u00E2ncia. LXVIII Tinham disposto entanto no terreiro As na\u00E7\u00F5es do sert\u00E3o pompa festiva, Criando Diogo principal primeiro Com aplauso geral da comitiva. V\u00EA-se ornado de plumas o guerreiro; E como em triunfo a multid\u00E3o cativa, E sobre os mais num trono levantado Cingem de pluma o vencedor c'roado. LXVIII A roda, como em c\u00EDrculo, prostrados, Sessenta principais das na\u00E7\u00F5es feras Em nome de seus povos humilhados, Submiss\u00F5es rendem com temor sinceras: Tujucupapo, estando os mais calados, \"Gr\u00E3o-filho do trov\u00E3o (disse) que imperas Em terra e mar com gl\u00F3ria combatendo, Tudo domaste com o raio horrendo. LXIX N\u00E3o te cedera, n\u00E3o, dos nossos peitos A varonil const\u00E2ncia em guerra humana; Nem da morte tememos os efeitos, Se a contenda n\u00E3o fora sobre-humana; Rendemos-te fi\u00E9is nossos respeitos, Depois que o teu valor nos desengana Que em teus combates todo o c\u00E9u te assiste; E a quem socorre o c\u00E9u quem lhe resiste? LXX As na\u00E7\u00F5es do sert\u00E3o, j\u00E1 convencidas, P\u00F5em a teus p\u00E9s os arcos e as espadas. Suspende o raio teu; protege as vidas Desde hoje ao teu imp\u00E9rio sujeitadas. E, se tens, como creio, submetidas As procelas, as chuvas e as trovoadas, N\u00E3o espantes com fogo a humilde gente, Mas faze-nos gozar da paz clemente. LXXI A teu comando est\u00E3o sem replicar-te Os povos deste vasto continente; E far\u00E1s com teu nome em qualquer parte Que te obede\u00E7a a valorosa gente. Faze com o favor que haja do amar-te, Como a tens com terror feito obediente; Que, se troveja o c\u00E9u na esfera escura, A luz manda tamb\u00E9m formosa e pura.\" LXXII \"N\u00E3o foi acaso (disse o her\u00F3i prudente, Respondendo ao discurso), foi destino Querer o gr\u00E3o-Tup\u00E1 que a vossa gente A m\u00E3o conhe\u00E7a do poder divino. Do c\u00E9u, que sobre v\u00F3s brilha luzente, Se receberdes o sagrado ensino, Livres com gl\u00F3ria do tirano averno Sobre ele reinareis num s\u00F3lio eterno. LXXIII Por\u00E9m, por serdes na ignor\u00E2ncia rude, Incapazes de ouvir o mais entanto, Buscai com raz\u00E3o maior virtude, Implorando o favor do trono santo. E, quando a vossa f\u00E9 pedi-lo estude, Vereis da antiga serpe no quebranto Florescer nesta p\u00E1tria de improviso Uma imagem do ameno para\u00EDso.\" LXXIV Disse o her\u00F3i generoso; a turba imensa, Em sinal de prazer com grata dan\u00E7a, V\u00E3o em fileiras com a m\u00E3o extensa, Fazendo com os p\u00E9s v\u00E1ria mudan\u00E7a: Uma perna bailando tem suspensa, E turma sobre turma em modo avan\u00E7a, Que id\u00E9ia d\u00E3o dos b\u00E9licos ataques, Retumbando entretanto os seus marraques. LXXV Os nigromantes, que o Brasil respeita, Um marraque descobrem venerado; Ins\u00EDgnia da na\u00E7\u00E3o, que ao povo aceita, Consideram por s\u00EDmbolo sagrado. O sacerd\u00F3cio, como turma eleita No minist\u00E9rio ao culto dedicado, P\u00F4s o b\u00E1rbaro termo \u00E0 fun\u00E7\u00E3o toda, Bafejando nos pr\u00EDncipes \u00E0 roda."@pt . . . "Jos\u00E9 de Santa Rita Dur\u00E3o"@pt . "Canto V"@pt . . . . "Caramuru/V"@pt . "D\u00E9bil entanto a luz sobre o horizonte Os seus tr\u00EAmulos raios apagava, E desde o ocidental imenso monte A noite pelas terras se espalhava. Morfeu, deixando os antros de Aqueronte, No seio dos mortais se derramava. Mas da b\u00E1rbara gente que fugia, S\u00F3 se entregava ao sono a que morria. II Fatigado Diogo ao lado estava E a bela esposa numa gr\u00E3-floresta; Nem ao preciso sono lugar dava Na aten\u00E7\u00E3o de a guardar da gente infesta. Um de outro os sucessos escutava, Nutrindo em novo fogo a chama honesta; Que, depois de um triunfo do inimigo, Faz-se doce a mem\u00F3ria do perigo. III IV V VI VII VIII IX X XI XII XIII XIV XV XX"@pt .